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"De uma sombra a outra" é a peça de manuel a.domingos que estará em estreia nos dias 12, 13 e 14 de dezembro (pelas 21h30) no Teatro Municipal da Guarda.
Um jovem que ambiciona ser poeta procura libertar-se do seu mestre, um velho poeta recorda a vida boémia que levou e a figura do seu amante, um casal e as suas cartas trocadas num emaranhado de vozes onde emissor e recetor se confundem, um homem solitário. Em todos eles: a evidência da fragilidade humana, a procura constante por respostas em relação ao amor, morte, a perecibilidade de tudo.
“De uma sombra a outra” é composta a partir de excertos de cartas de Alberto Lacerda, António José Forte, António Lobo Antunes, Arthur Rimbaud, Franz Kafka, Ingeborg Bachmann, José Bação Leal, Mário Cesariny, Paul Celan, Paul Verlaine, Rainer Maria Rilke e Soldados Alemães em Estalinegrado.
A encenação da peça é de Dora Bernardo e a interpretação será protagonizada por Luciano Amarelo e Rafael Lopes. A produção desta peça é do Teatro Calafrio, estando a produção executiva a cargo de Alexandre Costa e Ana Pereira.
Foto: Alexandre Costa
António Manuel Gomes é um conceituado médico psiquiatra e igualmente um exímio artífice de palavras que florescem em textos de inegável recorte literário. Este clínico guardense – homem culto, observador atento, dialogante – nunca se negou a desafios ao nível da intervenção cívica e cultural, numa manifesta expressão de exemplar cidadania. Avesso a holofotes, nem sempre a sua atividade teve a justa e merecida visibilidade. “O reconhecimento, não o nego, afaga a alma e dá consistência à identidade” diz nesta entrevista ao CORREIO DA GUARDA quando questionado sobre a distinção que vai receber no dia da Cidade da Guarda, na próxima quarta-feira, a 27 de novembro. Homenagem que faz questão em distribuir com “os outros que são parte de mim”. Ao CG afirma que a escolha da Medicina não foi resultado de um “chamamento ou vocação”, mas cedo compreendeu que “não me tinha enganado no destino”. Considerando que “os êxitos, fracassos e problemas, são inerentes à vida de um médico”, António Manuel Gomes classifica, “em termos sincréticos” como “muito positivo um longo período do SNS em que as turbulências eram claramente menores e a relação interpessoal tinha outra densidade humana.”
Nascido nas Vendas da Vela, em outubro de 1954, António Manuel Gomes estudou na Covilhã e em Coimbra, trabalhou no Hospital Psiquiátrico do Lorvão, dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital Sousa Martins, integrou os corpos sociais da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários Egitanienses, foi fundador do grupo de Teatro à Vela e do grupo coral Recanto do Canto, tendo encenado três peças de teatro e sido o autor de contos e textos publicados em jornais e revistas.
Estudou a partir dos 7 anos na Covilhã. Qual a razão que o levou a ir para essa cidade?
Os meus pais sempre residiram na Covilhã. Foi por acaso e urgência que nasci nas vendas da vela, em casa dos meus avós maternos, onde a minha mãe se encontrava naquele dia, com 24 anos, e aconchegada no ninho original.
Fiz a quarta classe numa obra da fundação Melo e Castro, designada Associação Protectora da Infância Desvalida. Este longo e expressivo nome, resultava do facto de a escola dar resposta aos filhos das operárias e operários dos lanifícios; ao tempo já tinha cantina para as crianças.
Devo às preocupações do meu pai com o meu ingresso na escola primária, a descoberta de um tal professor Manuel Poeta. Conseguiu que eu entrasse naquela instituição onde, de resto, pelas mesmas razões de excelência do docente, também tive alguns filhos de industriais como colegas. Foi determinante no meu futuro escolar. Quando concluí a quarta classe foi-me atribuído o prémio de melhor aluno pela fundação Melo e Castro.
Foi ainda na Covilhã que concluí o sétimo ano do liceu, sendo na altura o único aluno que dispensou do exame de admissão ao ensino superior em todas as disciplinas.
Como via, nessa altura, a cidade da Guarda? Que contraponto fazia com a Covilhã?
As minhas deslocações à Guarda eram esporádicas. A viagem na camioneta do Tonico começava na Covilhã e acabava nas Vendas da Vela. Ainda assim recordo a Guarda como uma cidade aconchegada, de humanidade sadia, como uma extensão rural e telúrica que o meu avô me tinha ensinado.
A Covilhã, era um uivo de sirenes quase permanente. O corrupio dos operários e operárias, ora saindo, ora entrando, nas dezenas de fábricas de lanifícios, dava às ruas e às travessas um alarido enérgico e contagiante que me enchia a estreita paisagem da janela de casa.
O que representou a sua ida para Coimbra e como foi a adaptação à vida académica da cidade? A vivência na residência do Colégio de São Teotónio é um período com boas recordações?
As lágrimas de despedida de casa secaram depressa. Não ia só. Éramos vários colegas de liceu, dispersos por vários cursos, e já tínhamos laços consistentes. A residência universitária do colégio de São Teotónio deu-nos um conforto e um acréscimo de novas relações; as maluqueiras coletivas e as discussões no refeitório são ainda hoje retalhos da minha memória distante que muito prezo.
A Universidade de Coimbra, em 1972, mantinha o luto académico que já vinha dos 4 anos anteriores. Não havia praxe nem queima das fitas; as capas e batinas concentravam-se num número muito exíguo de estudantes e as conotações conservadoras eram vorazes.
O ambiente académico era propício ao incremento de atividades culturais? Como viveu Coimbra em termos culturais?
Viver Coimbra antes, durante e depois do 25 de abril, foi um privilégio que tocou a poucos, mas calhou-me a mim.
O antes já era uma surdina de palavras proibidas e irreversíveis cujo contágio era imparável. Um dia, ao sair da minha primeira aula teórica de química médica, juntamente com mais três colegas, saiu do Nívea (Volkswagen da polícia) um agente que veio junto de nós e nos mandou dispersar. Éramos quatro e íamos almoçar à cantina. Era a própria polícia que, paradoxalmente, nos tirava a ingenuidade e incentivava à resistência.
O durante foi uma flutuação frenética entre a incredulidade e a esperança; mas o primeiro 1º de Maio tornou-se o grande clamor da irreversibilidade.
O depois, na academia, traduzia o país. As paixões despontavam numa fragmentação política de marcado pendor à esquerda. As derivas tornavam-se evidentes e as discussões descomprimidas e abertas inundavam as mesas dos cafés e as reuniões gerais de estudantes. No cinema, no teatro e nas palavras escritas, surgia um mundo novo até então desconhecido pela maioria de nós.
Quais as leituras e as músicas que ouvia mais nessa época? Os seus gostos alteraram-se?
As músicas eram partilhadas por todos e as descobertas eram permanentes. Woodstock operou uma viragem nos gostos e na liberdade. Os cantores de intervenção, portugueses e estrangeiros, eram obrigatórios nas noitadas de alegria e copos. Lembro-me de um opúsculo clandestino com letras do Manuel Alegre musicadas que era obrigatório em todos os encontros.
Ainda a propósito do poeta, sintonizávamos a rádio Argel, antes da revolução, e lá estava a sua voz inconfundível. Os meus gestos caminharam com o tempo e a idade, e ainda hoje são feitos de muitas partilhas e descobertas. Não fiquei ancorado nos deslumbramentos de juventude, mas ainda hoje são referências que partilho com os meus netos, e eles também gostam.
O que recorda de mais positivo e de mais negativo na sua passagem pela Universidade de Coimbra?
Vivi em Coimbra dos 17 aos 34 anos. Ao tempo, a academia era um amplo espaço de convívios e estímulo. A Praça da República era o grande pátio da universidade. Por ali deambulavam as figuras de referência das várias faculdades. Este borbulhar era fascinante, e todas as conversas nos guindavam para novos planos de descoberta e liberdade. Mesmo na discórdia, estava instalada uma alegria inaugural que contagiava a comunicação.
De negativo, talvez recorde momentos de tensão estudantil desencadeados por processos de manipulação e radicalismo, levados a cabo por correntes ideológicas múltiplas onde o padrão de alienação se instalava de modo acrítico e obstinado.
Formou-se em Medicina e especializou-se em Psiquiatria? Porquê esta opção?
Fui para a medicina por uma espécie de acordo de grupo entre alguns colegas de liceu. Não me lembro de sentir um chamamento ou vocação; mas cedo percebi que não me tinha enganado no destino.
A psiquiatria aconteceu pela influência específica e incentivo do doutor Manuel Lousã Henriques. Era uma referência de Coimbra em termos psiquiátricos, culturais e humanistas. Tive a sorte de o ter como assistente de psiquiatria quando fazia a cadeira, e quando acabava a aula ninguém tinha dado pelo passar do tempo. Aconselhou-me o Lorvão.
A partir da especialização como foi o seu percurso profissional? Que êxitos e que problemas registou, sucintamente, ao longo do período em que exerceu a sua atividade, no SNS? E que importância teve a sua passagem pelo Hospital do Lorvão?
A especialização decorreu no hospital psiquiátrico do Lorvão, onde 3 jovens psiquiatras residentes tiveram, pela abrangência, pelo entusiasmo, pelo arejamento e pela inovação, uma influência determinante na minha formação.
Os êxitos, fracassos e problemas, são inerentes à vida de um médico. Mas, em termos sincréticos, sinto como muito positivo um longo período do SNS em que as turbulências eram claramente menores e a relação interpessoal tinha outra densidade humana.
O facto de ter pertencido às gerações que prestaram o serviço médico à periferia, enraizou para sempre uma crença no recém-implantado SNS. Mas o curso dessa crença tem vindo a desagregar-se. As razões não cabem aqui nem são lineares; mas, o resultado final insatisfaz os doentes e desanima os profissionais de saúde. Não sei quando nem como nos vamos reencontrar.
O Hospital da Guarda diferenciou-se na área da Psiquiatria? As instalações condicionaram/condicionam a atividade médica?
Quando há 37 anos fui convidado, com o Paulo e o Antídes, para abrir um serviço de psiquiatria na guarda, a decisão não foi demorada. Inicialmente na Praça velha, como centro de saúde mental, sem serviços de internamento próprio, desenvolvíamos consultas em articulação com os 14 centros de saúde do distrito e os casos urgentes eram encaminhados para o internamento do Lorvão.
Quando passámos a ocupar as atuais instalações do departamento de psiquiatria, integrados no hospital Sousa Martins, sempre sentimos a casa e a causa como nossas. Fomos muitos e sucessivos a arregaçar as mangas. Talvez por isso nunca nos sentimos condicionados nem num espaço exíguo.
A psiquiatria tornara-se centrífuga e ainda continuamos a visitar no seu domicílio mais de 300 doentes por mês, em todo o distrito.
Que projetos não viu concretizados, em termos hospitalares?
Volvidos 37 anos, com novas realidades e ambições, lamento, sem hesitação, que não se tenha construído um novo departamento.
Como vê, atualmente, a saúde mental em Portugal? Há falta de recursos humanos e de unidades de tratamento e acompanhamento?
Penso, como em tudo, que já estivemos pior. Ainda assim há muitas assimetrias e a resposta não é linear.
A maior densidade populacional; novas patologias sociais de desenraizamento e deslaçamento afetivo; défice crescente de comunicação corpo a corpo; imputação de responsabilidades e deveres aos outros; eu sei lá… Mais do que problemas de saúde mental, há um caldo doentio que nos circunda e inquieta. Às vezes não são os percursos é o modo como se recorre aos recursos.
Acha que a recente pandemia agravou os problemas no contexto da saúde mental? Aumentou a conflitualidade social?
Nos idosos a pandemia teve um efeito devastador. Para além da morte, e sobretudo nos doentes institucionalizados, o embate nas funções cognitivas e motoras foi imenso e irreversível.
Nos restantes grupos etários, com a plasticidade inerente a cada idade, houve um claro acréscimo das doenças ansiosas e depressivas com fenómenos de antecipação e medo. As fobias obsessivas em menor expressão, assim como as patologias paranóides.
Quanto à conflitualidade social, sinto-a hoje teimosamente residente e sem carecer de pandemias para se alimentar.
Como aconteceu a sua ligação aos Bombeiros da Guarda? Que balanço faz desse período?
Foi o Pedro Lopes e o Álvaro Guerreiro que me convidaram para integrar uma direção. Depois fiquei mais de vinte anos. É uma casa que ficou a fazer parte de mim como de muitos outros que por lá passaram.
Os bombeiros são simultaneamente homens e mulheres com um imenso espírito de solidariedade e entrega, como “vidrinhos” de uma sensibilidade ressentida. É como se uma cristalização da adolescência lhes ficasse agarrada à pele. É essa mistura mágica que faz aquela casa e o sentido a que se propõe.
Acha que o voluntariado está em crise?
Esta pergunta acrescenta novas nuances à resposta anterior. A crescente e necessária profissionalização dos bombeiros para que se ajustem à sempre velha e nova realidade do fogo, conduziu ao decréscimo do voluntariado tradicional.
Ainda assim continuo a acreditar nesta determinação estruturalmente humana. Enquanto houver uma criança de olhos desorbitados deslumbrada com a enormidade elegante dum carro de bombeiros, o voluntariado terá sempre um fogo interior que o move. E todas as formas de voluntariado carecem desse fogo interior que anule o individualismo e o alheamento.
Está profundamente ligado à criação do grupo de “Teatro à Vela” e do grupo coral “Recanto do Canto”. O que representaram para si, e para a Vela, estes dois grupos e qual a projeção que tiveram?
O que representaram para Vela, talvez não me caiba a mim a avaliação. É preciso que o tempo aglutine a distância e as memórias. O que representou para mim é um desassossego enorme de vivências e emoções. Vou aglutinar-me: tinha regressado de Coimbra com a família; a Vela ainda lambia as feridas de cisões políticas estéreis; o Álvaro era mordomo e desafiou me a escrever uma peça; lembrei-me da adolescência na quinta dos meus avós; do Padre Amarelo me vir buscar para entrar no teatro; fui à procura dos “velhos” que eu tinha visto em palco quando garoto; todos me disseram que sim; esbocei o projeto e li-o em grupo; no final vi algumas lágrimas, talvez estivesse certo; depois foi meter no palco avós, filhos e netos; a Taverna comportava a vida; transformou-se numa peregrinação de alegria que nos ultrapassou (e a mim, sobretudo).
O Recanto do Canto veio mais tarde como um complemento de disciplina e organização. O Mário Barreiros e a sua tranquilidade gentil levaram-nos a quatro vozes numa polifonia que mais tarde emudeceu, mas ainda a oiço na memória.
Escreveu e encenou três peças de teatro. O que significa para si o teatro e como vê hoje, à distância de alguns anos, estas peças e o sucesso que alcançaram?
Sim. A Taverna (en)cantada; o Sagrado e o profano e a Cesta de fantoches. A Taverna durou mais de doze anos e somou cinquenta e quatro representações em vários pontos do país. Éramos saltimbancos de alegria. Ver avós, filhos e netos, no mesmo palco, era uma gratificação extraordinária. Três dos que então chamávamos bando de estorninhos, começaram com seis anos e são hoje atores profissionais. Disse muitas vezes que era melhor plantar um alfobre do que comprar couves.
O teatro é ver num palco uma amostra da vida ou a própria vida; com a luz e a sombra; o delírio e a crueza; o amor e a indiferença; a esperança e a solidão; nós e os outros ou, sobretudo, o que os outros têm de nosso e nós temos dos outros. O teatro é sobretudo esta escola de estética com poesia por dentro do corpo.
Sinto hoje que, quando escrevi a Taverna, era um artesão ingénuo dos afetos e ainda hoje, por entre as penumbras do tempo, não me sinto muito diferente de mim.
E como vê, hoje, a cultura na Guarda e no interior do país?
Se me reportar há trinta e sete anos, quando vim de Coimbra, a decadência é notória ainda que com algumas flutuações. Então esta cidade fervilhava e nunca me senti órfão de Coimbra.
Assisti na Guarda a múltiplas manifestações culturais na sua mais diversa expressão. Esta dinâmica tinha o dedo e a obstinação do Américo Rodrigues. Há razões também de natureza demográfica e de modificação de hábitos.
As redes sociais não nos grudavam aos pequenos ecrãs como uma crescente clausura de alienados. Ao tempo, a desoras, com um grupo de amigos, para beber um fino no Zé da Praça ou no Caçador, era preciso ter a sorte de um lugar.
Ainda “permanece amante das palavras vadias”, como referia numa sua nota biográfica?
Permaneço, ainda que com menor densidade de momentos que há umas décadas atrás. Talvez me tornasse mais seletivo e conciso.
Normalmente escrevo por impulso e obedeço a chamamentos interiores ligados às coisas da vida (ou à vida das coisas). Isolo-me numa casa antiga, com a lareira por dentro da salamandra de inverno e com uma grande amplitude de músicas de referência a flutuar no espaço.
Depois é começar a ligar a filigrana das palavras com a delicadeza que elas merecem: são por natureza muito solidárias e atraem-se com a mesma multiplicidade de sentimentos que os humanos. Às vezes fazem-me chorar e isso significa que se agarraram a mim pela ponta dos dedos
Possui uma diversidade de contos e textos publicados em jornais e revistas. Para quando uma obra que reúna essa produção? E para quando um livro novo?
Nunca esteve nos meus horizontes a publicação. Mesmo quando saiu o “Litoral” foi um desafio teimoso do João Luís Neca, do Bando de Palmela.
Julgo ter sido o Vergílio Ferreira que um dia escreveu que mesmo aqueles que escrevem para a gaveta, estão sempre à espera que um dia lh’a abram. Eu escrevi muito para a gaveta e era a minha mulher que a arrumava e organizava. Mais tarde o meu filho disciplinou-me no computador, mas continua a ser a minha gaveta informática.
Sem falsa modéstia, é o momento em que escrevo - à mão - que me seduz e alimenta; depois, muito raramente revisito o que escrevi; tenho medo do desconsolo. Nos últimos tempos, por “encomenda” de um estorninho da Taverna, o Pedro Sousa do Acert de Tondela e dos Gambuzinos e Peobardos, tenho escrito textos para teatro, e não me desagrada a publicação oral.
Escrevia no seu livro “Litoral”: “quando regressei às origens nada de mim morreu. Vendo bem, aconteci de outra maneira”. A ligação ao seu Avó contribui para esse regresso? Que memórias guarda desses primeiros anos da sua infância?
E continuo a acontecer de outra maneira porque a vida nos chama de muitas encruzilhadas e distâncias. O regresso de Coimbra foi o fecho do triângulo. Nasci na quinta. Na Covilhã era uma criança urbana; pedia autorização para ir brincar para o Jardim com os amigos; Eu e o João éramos os acólitos da missa da tarde na igreja de São Francisco; o padre Lemos (que depois deixou de o ser) emprestou-nos, aos dois, com conhecimento dos pais, um livro sobre educação sexual para crianças; era o tempo do Vaticano II; mais tarde, pelas dezassete horas, já eu e o João tínhamos extorquido, às respetivas mães, vinte cinco tostões cada um, para jogar snooker no Ginásio Clube.
No fim de semana e nas férias lá vínhamos na camioneta do Tonico para a quinta. O meu avô era um pedagogo nato. Dotado de uma subtileza invulgar tinha o humor clarividente de Monsieur de la Palisse que denunciava a essência por detrás do óbvio. Com ele, desde muito pequeno, aprendi todos os trabalhos e ciclos rurais. Muito pequeno, saltei um dia para um cesto de uvas de mesa e comecei a pisá-las, imitando os homens no balceiro; indiferente ao meu orgulho, o meu avô passou por mim e disse à minha mãe: ó Clementina vai lá ver o Tó! E mais aqui não cabe do Homem que me ensinou a dimensão das pequenas coisas que ainda hoje preenchem a essência mais nobre do meu pensamento.
O que continua a representar para si a Vela, globalmente entendida?
A Vela era o meu lado rural e telúrico. Quando mais tarde, já na faculdade, me afundei nos livros do Torga (com quem um dia falei), tinha encontrado por inteiro o lado granítico da existência.
Os sítios do silêncio nos lilases do crepúsculo. E ainda hoje, quando olho para a Serra do Seixo, vejo o dedo gordo e indicador do meu avô a ensinar-me onde o Sol se punha no pino do verão; depois começava a pôr-se cada vez mais abaixo – dizia. Eu viria a aprender o que era um solstício; o meu avô não precisava disso para nada.
A Vela continua a ser isto: um mosaico imenso de memórias à solta e, claro os amigos com quem continuo a entusiasmar-me na liberdade livre de uma boa conversa.
O que pensa desta homenagem que lhe faz o Município da Guarda?
Ouvi um dia a Jairzinho, jogador de excelência da seleção canarinha campeã do mundo, que falar sobre nós é indigesto. O reconhecimento, não o nego, afaga a alma e dá consistência à identidade. Mas foi com muitos outros, no trilho profissional; nas aventuras culturais; na partilha mais abrangente da vida; foi com os outros que são parte de mim, que esta homenagem é parte deles.
H.S. /Correio da Guarda
O Gambozinos e Peobardos – Grupo de Teatro da Vela vai estar em cena, nas ruas da Guarda, nos próximos dias 19 e 20 de outubro para aptresentarem a peça "Aurora".
Partindo do poema de Sophia de Mello Breyner, este novo espetáculo pretende celebrar/revisitar e não esquecer os 50 anos do 25 de Abril de 1974.
Este percurso teatral tem a particularidade de se iniciar no fim da madrugada à porta do teatro e de terminar ao nascer do sol, ao amanhecer, ao romper da aurora num local ainda por descobrir.
A peça tem início às 6h30, no Paço da Cultura e termina no ponto mais alto da cidade, Torre de Menagem, às 8h30. O bilhete tem um custo de 3€ e as inscrições são limitadas a 35 espetadores por sessão.
Em Pousade (Guarda) vai ser apresentado o teatro religioso "Eis, Pôncio Pilatos!", com direção artística de Daniel Rocha.
Este espetáculo é uma representação de índole comunitária que pretende respeitar a tradição centenária de teatro religioso e popular de Pousade, sendo uma coprodução do Grupo Desportivo e Cultural Pousadense e do Teatro Municipal da Guarda (TMG).
A representação terá início pelas 21h30. Esta atividade, que estava incluída no Programa Semana Santa Cultura e Fé do Município da Guarda, estava prevista para o passada sábado, mas teve de ser adiada devido às condições atmosféricas.
Ontem, dia 21 de outubro de 2023, subiu à cena, no palco do Grande Auditório do Teatro Municipal da Guarda, a peça “Guarda a nossa Rádio”.
Esta peça é, ante de mais, a celebração da rádio e, simultaneamente, uma proposta de reflexão sobre a função social deste meio de comunicação; sobretudo em regiões do interior onde nunca serão de mais as vozes que possam dar voz às populações, aos valores culturais e históricos, ao presente, aos sonhos do futuro.
A rádio continua a ter um papel fundamental na informação local e regional, na defesa da identidade destas terras e gentes. Nesta peça – cujo texto pode ser adaptado ou interpretado em diferenciados contextos geográficos, onde a rádio esteja presente – o espetador é levado para um estúdio de Rádio, onde há vozes, músicas, memórias, sentimentos, sonhos, paixão, afetos; é desafiado a assistir a um programa de rádio, numa noite especial, onde se cruzam três gerações e que proporciona a revisitação de múltiplas estórias; a evocação de distintas vivências marcadas pela magia da rádio. No final há uma inesperada revelação e um comovido apelo para que a rádio se continue a reinventar e afirmar no futuro…
O próximo dia 21 de outubro é uma data com um significado particular no historial da Rádio Altitude (RA), que está a comemorar o 75º aniversário. Isto porque no ano de 1947 era aprovado um regulamento onde estavam definidas as orientações para o indispensável e normal desenvolvimento das emissões radiofónicas da futura estação CSB-21.
Para a estação emissora da Caixa Recreativa do Sanatório Sousa Martins era definido o objetivo de proporcionar aos doentes “certas distrações compatíveis com a disciplina do tratamento”, acrescentando-se que a estação iria funcionar “sob administração direta da Comissão Administrativa, que nomeará um dos seus membros para Diretor dos respetivos serviços”.
De acordo com o referido regulamento, o diretor dos serviços tinha a seu “cargo a orientação geral das emissões e as regras que presidem à administração corrente, mas a criação de receitas e a realização de despesas terão de ser aprovadas segundo os termos normais da Caixa Recreativa”.
Num dos artigos determinava-se que “os produtores, locutores e operadores serão pessoas em condições suficientes de saúde para exercerem as respetivas funções e os nomes serão apresentados à Direção do Sanatório para aprovação”; a antecipada e cuidada organização (com 48 horas de antecedência) dos programas constituía uma das exigências que integravam o documento, “embora sem prejuízo da atualidade que os assuntos podem merecer.”
Aos locutores era recomendado que falassem de harmonia com os programas que teriam sob a sua responsabilidade “e não poderão exceder-se em trabalho nem levantar a voz”, sendo referido que “os operadores deverão colaborar com os locutores da maneira mais adequada e conducente à boa realização dos programas” e estipulada a permissão de serem acumuladas na mesma “pessoa as funções de produtor e locutor”.
Este regulamento não era totalmente alheio ao contexto político e social da época; daí que, embora ficasse garantida aos produtores dos programas a “liberdade na escolha dos assuntos”, fossem alertados para o facto de não serem permitidos “assuntos de ordem política”, mas eram consentidos “assuntos de ordem religiosa, desde que acatem os princípios católicos”.
Outra norma orientadora – o que se compreende face ao circunscrito auditório dessa época – dizia respeito à indicação de que não deviam “ser escolhidos temas pessimistas ou de orientação prejudicial à boa disposição dos doentes”.
Um artigo do regulamento da Rádio Altitude fazia menção específica ao programa “Simpatia”, o qual era “preenchido com os discos pedidos pelos radiouvintes”; esse espaço radiofónico não devia “exceder metade da emissão total, enquanto for organizado diariamente”. Por outro lado, “as dedicatórias que acompanhem os pedidos” tinham de ser escritas “por forma a facilitar a locução” e não poderiam “ir além de 50 palavras, tratando-se de prosa, ou de 16 versos, se os solicitantes adotarem poesia”.
No mesmo artigo era clarificado que as dedicatórias deveriam “ser corretas e de harmonia com o carácter de relações existentes entre pessoas decentes”, tendo de ser apresentadas até às 14 horas. “As dedicatórias que forem entregues depois dessa hora não serão transmitidas no próprio dia.”
Este regulamento, aprovado por Ladislau Patrício (que era o Diretor do Sanatório Sousa Martins e desde cedo percebeu a importância e o alcance da Rádio), para além da informação que nos transmite sobre a vivência radiofónica de então e a forma como era desenvolvida, a par das preocupações de balizar os conteúdos programáticos das emissões, remete-nos para um tempo onde se solidificavam os alicerces da emissora. A inauguração oficial da rádio ocorreria, como é sabido, a 29 de julho do ano seguinte.
Interessante coincidência é a estreia no palco do Grande Auditório do Teatro Municipal da Guarda da peça “Guarda a nossa Rádio”, no próximo sábado – 21 de outubro -data em que passam 76 anos a aprovação do primeiro regulamento da RA.
Esta peça é, ante de mais, a celebração da rádio e, simultaneamente, uma proposta de reflexão sobre a função social deste meio de comunicação; sobretudo em regiões do interior, como esta zona da Beira Serra, onde nunca serão de mais as vozes que possam dar voz às populações, aos valores culturais e históricos, ao presente, aos sonhos do futuro.
A rádio continua a ter um papel fundamental na informação local e regional, na defesa da identidade destas terras e gentes. Nesta peça – cujo texto pode ser adaptado ou interpretado em diferenciados contextos geográficos, onde a rádio esteja presente – o espetador é levado para um estúdio de Rádio, onde há vozes, músicas, memórias, sentimentos, sonhos, paixão, afetos; é desafiado a assistir a um programa de rádio, numa noite especial, onde se cruzam três gerações e que proporciona a revisitação de múltiplas estórias; a evocação de distintas vivências marcadas pela magia da rádio. No final há uma inesperada revelação e um comovido apelo para que a rádio se continue a reinventar e afirmar no futuro.
Há referências especiais, nomes e vozes que serão percetíveis aos espetadores. Essas personagens, como referi anteriormente, dão ao espetador a liberdade de as associar a outras vivências. São os afetos e a paixão pela Rádio que alimentam os diálogos, as memórias.
Deixamos, aos leitores, o convite para celebrarem também a rádio e para a conhecerem por dentro; para entrarem no estúdio, reterem gestos e movimentos, penetrando nos pensamentos de quem está frente ao microfone, perante muitos rostos imaginários que estão do outro lado.
A sua presença será uma manifestação do apreço pela rádio, pela sua história, pela sua importância na sociedade de hoje; será também a expressão de que estão empenhados na Guarda da rádio e naquilo que ela significa enquanto memória coletiva.
Hélder Sequeira
in O Interior | 18-out-2023
Os Gambozinos e Peobardos - Grupo de Teatro da Vela vão estrear na próxima sexta-feira, 3 de fevereiro, o espetáculo “O Dia Depois de Amanhã”.
Esta décima sétima criação dos Gambozinos e Peobardos resulta de “conversas com antigos combatentes da Guerra Colonial, narradas na primeira pessoa, com o olhar no capim, com o cheiro nas sanzalas, a voz ainda embargada e a memória a pregar partidas”, como é referido a propósito desta nova produção.
Trata-se de um espetáculo “criado com as estórias de quem viveu a Guerra Colonial nas três frentes, Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. 60 anos passados”.
Foto: Gambozinos e Peobardos
O “Dia Depois de Amanhã” é uma “narrativa onde a realidade e a ficção se confundem, onde o passado é o presente e o presente é o passado e as lágrimas sabem a mar, sabem a despedida, sabem a partidas e a chegadas”.
Com dramaturgia de António Manuel Gomes e Pedro Sousa, que é também o encenador, este novo trabalho dos Gambozinos e Peobardos ( em coprodução com o Teatro Municipal da Guarda (TMG), com o apoio da Santa Casa da Misericórdia da Guarda – extensão do Lar da Vela e do Trigo Limpo Teatro ACERT de Tondela) é apresentado no Pequeno Auditório do TMG, pelas 21h30, sendo de novo levado à cena no sábado, 4 de fevereiro, pela mesma hora.
No Teatro Municipal da Guarda (TMG) vai ser apresentada no próximo dia 29 de junho a peça “Email (desta mãe que tanto te ama), de Jacinto Lucas Pires, com interpretação de Anabela Faustino e encenação de Ivo Alexandre.
Este monólogo pronuncia a história de sofrimento de uma mãe que perde o filho, ao mesmo tempo que a liberta do estado de negação em que vive.
Em Email (desta mãe que tanto te ama), Jacinto Lucas Pires mostra a escrita como meio de reconciliação com a vida, num tom de comédia agridoce. De luvas calçadas, Maria vê o pó da casa como metáfora dos fantasmas que lhe assombram a mente e que é preciso limpar.
Foto: Susana Neves (TNSJ)
A DOIS é uma Companhia que pretende ser um polo de criação teatral que congregue múltiplos artistas de diversas vertentes. Pesquisar, experimentar, inovar, estando sempre intimamente ligados com a sociedade.
A DOIS foi fundada em 2014 e tem como diretores artísticos Ivo Alexandre e Anabela Faustino. Os seus objetivos primordiais são desenvolver atividades de criação; formação na área da interpretação; tradução e publicação de textos.
Desde o início da sua formação, aposta na criação de textos originais, valorizando a dramaturgia contemporânea portuguesa – a partir de um tema; textos já existentes; da partilha de ideias entre dramaturgo, atores e encenador; do diálogo estreito entre artistas e comunidade.
Para além da dramaturgia portuguesa, a DOIS tem como foco a pesquisa, experimentação e divulgação dos mais diversos universos teatrais, explorando dramaturgias contemporâneas e clássicas, sempre em articulação com um questionamento sobre a subjetividade nos panoramas sociais e artísticos contemporâneos.
A relação com as comunidades é também uma das preocupações da DOIS. Aproximar o espetador das práticas artísticas, tornando-o mais atento e participativo na sociedade; promovendo a inclusão social e cidadania; fomentando a reflexão sobre o sujeito na sua diversidade cultural, social, política, psicológica e ontológica.
Américo Rodrigues tem editado um novo livro de poesia, intitulado “desmoronamento”, com a chancela das Edições Sr. Teste.
Esta obra, que reúne poemas recentes do autor, inclui desenhos de Maria Lino. De referir que foi feita também uma edição especial do livro que inclui, em cada exemplar, um desenho original da pintora e escultora.
A coletânea de poemas de Américo Rodrigues integra-se na coleção “Fulgor Quotidiano”, em que estão representados autores como Kafka, Artaud, Hannah Arendt, Octavio Paz, Walter Benjamin, Bataille, Michaux, entre outros. Américo Rodrigues é o primeiro poeta vivo editado por aquela editora, que acaba também de lançar um livro de E.M. de Melo Castro, de quem o autor guardense era admirador.
Face aos condicionalismos resultantes da atual pandemia a apresentação será feita no decorrer de uma conversa através da plataforma digital Zoom, hoje a partir das 19h30, com a participação dos editores, Américo Rodrigues, Eugénia Melo e Castro e Rui Torres.
Américo Rodrigues, atual diretor-geral das Artes, nasceu em 1961, tendo sido diretor do Teatro Municipal da Guarda (2005-2013) e coordenador da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço (2005-2018)
Actor, poeta sonoro e performer, Américo Rodrigues é autor de várias obras de poesia, crónica, teatro e literatura para crianças. “Na nuca”(1982), ”Lá fora: o segredo” (1986) “A estreia de outro gesto” (1989), “Património de afectos” (1995), “Vir ao nascedoiro e outras histórias (1996), “Instante exacto” (1997), “Despertar do funâmbulo” (2000), “O mundo dos outros”(2000), ”Até o anjo é da Guarda” (2000),“Panfleto contra a Guarda” (2002), “Uma pedra na mão” (2002), “Obra completa – revista e aumentada” (2002), “O mal – a incrível estória do homem-macaco-português” (2003), “A tremenda importância do kazoo na evolução da consciência humana” (2003), ”Escatologia” (2003), “Os nomes da terra” (2003), “A fábrica de sais de rádio do Barracão (2005), “Aorta Tocante” (2005), “O céu da boca” (2008), “Escrevo-Risco” (2009) e “Cicatriz:ando” (2009) são alguns dos seus trabalhos. O seu último livro de poesia publicado foi "Arquivo Morto" (2017).
Coordenou os cadernos de poesia “Aquilo”, do boletim/revista “Oppidana”, foi co-diretor da revista “Boca de Incêndio”, coordenador da revista cultural “Praça Velha” e da coleção de cadernos “O fio da memória”. Fundou o Teatro Aquilo e também o Projéc~.
Colunista de vários jornais, recebeu o Prémio Gazeta de Jornalismo Regional e também o Prémio Nacional de Jornalismo Regional.
Em 2010 recebeu a medalha de mérito cultural atribuída pelo Ministério da Cultura.
Foi animador cultural na Casa de Cultura da Juventude da Guarda/FAOJ (desde 1979 até 1989) e na Câmara Municipal da Guarda (desde 1989), onde coordenou o Núcleo de Animação Cultural.
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