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Sanatório da Guarda: património desprezado...

por Correio da Guarda, em 18.05.25

Pavilhão António Lencastre_Sanatório_foto HS_

Hoje, 18 de maio, ocorre a passagem do centésimo décimo oitavo aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins que, durante décadas, desenvolveu uma eminente ação assistencial na cidade mais alta de Portugal.

A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório teve lugar a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia.

Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (...), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (...)”.

Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural da referida estância de saúde. O Sanatório Sousa Martins foi uma das principais instituições de combate e tratamento da tuberculose em Portugal. A designação de “Cidade da Saúde” atribuída à Guarda em muito se fica a dever à instituição que a marcou, indelevelmente, no século passado.

A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas do nosso país, tendo a elevada afluência de pessoas deixado inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural. A apologia desta cidade como centro urbano “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras, pois era “a montanha mágica” junto à Serra. Muitas pessoas (provenientes de todo o país e mesmo do estrangeiro) rumaram à cidade mais alta de Portugal com o objetivo de usufruírem do seu clima, praticando, assim, uma cura livre; não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos.

As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e a consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões; isto porque não havia, no início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento; situação que originou fortes preocupações sanitárias às entidades oficiais.

No primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, o médico Lopo de Carvalho destacou os processos profiláticos usados na Guarda; este clínico foi um dos mais empenhados defensores da criação do Sanatório guardense, do qual viria a ser o primeiro diretor. O fluxo de tuberculosos que vieram para o Sanatório guardense superou, largamente, as previsões, fazendo com que os pavilhões construídos se tornassem insuficientes perante a enorme procura. O Pavilhão 1 (onde funciona atualmente a sede da Unidade Local de Saúde da Guarda) teve de ser aumentado um ano depois, duplicando a sua capacidade.

Em 31 de maio 1953 um novo pavilhão (que ladeia hoje a atual Avenida Rainha D. Amélia) foi acrescentado aos três já existentes. Com a construção deste novo pavilhão, o Sanatório Sousa Martins procurou aumentar a capacidade de resposta às crescentes solicitações das pessoas afetadas pela tuberculose, ampliando assim o seu papel na luta contra essa doença. O elevado número de doentes com fracos recursos há muito fazia sentir a necessidade de dotar esta conhecida unidade de saúde com novas instalações; pretensão que os responsáveis pelo Sanatório Sousa Martins tinham já manifestado ao Ministro das Obras Públicas, aquando da sua visita, à Guarda, em 1947. O Sanatório Sousa Martins ganhou, consequentemente, maior dimensão e capacidade de tratamento de tuberculosos.

Hoje, anotar a decrepitude dos antigos pavilhões, o perigo iminente de derrocada (ou outras eventuais ocorrências) e a passagem dos 118 anos após a inauguração deste Sanatório, não é um mero exercício de memória ritualista. É evidenciar o estado lastimoso em que se encontra o património físico de uma instituição com merecido relevo na história da saúde e da medicina em Portugal; um Sanatório ligado também à solidariedade, à cultura e à história da radiodifusão sonora portuguesa, mercê da emissora (Rádio Altitude) aqui criada em finais da década de quarenta do passado século.

“A ausência de interesse tem sido gritante, imperdoável e inaceitável. Os edifícios em completa ruína, além de constituírem um perigo permanente, são um verdadeiro atentado à história local. Creio que é mesmo um dos maiores, se não o maior atentado patrimonial, cometido na Guarda, no último século.” Como sublinhou, ao Correio da Guarda, Dulce Borges (com meritório trabalho de investigação, estudo e divulgação sobre o Sanatório) ao Correio da Guarda. Uma entrevista que pode reler aqui.

Os históricos pavilhões Rainha D. Amélia e D. António de Lencastre continuam, apesar de sucessivos alertas e artigos publicados, a ser desprezados, esquecidos.

A sua recuperação permitiria que fossem utilizados para fins assistenciais ou outros; houve já projetos para a criação de um espaço museológico no Pavilhão Rainha D. Amélia, para a valorização do património florestal da antiga cerca do Sanatório; em 2001/2002 foi elaborado “um projeto para o Hospital da Guarda, que englobava o Pavilhão D. Amélia para as Consultas Externas, acoplado com outro pavilhão moderno. O pavilhão D. António de Lencastre estava destinado à parte administrativa, fazia parte de um complexo para a parte administrativa, acoplado a outros espaços”, como nos disse o Dr. José Guilherme (que dirigiu o Hospital da Guarda), em entrevista publicada na Revista Praça Velha. Nas últimas décadas outras ideias foram surgindo, para utilização desses edifícios, sem que tivessem qualquer concretização até à presente data.

Ruínas do Sanatório da Guarda

O abandono e degradação dos antigos pavilhões do Sanatório Sousa Martins não dignifica uma cidade que se quer afirmar pela história, pela cultura, pelo ensino, pelo turismo, pela qualidade do seu ar, pela sua localização…

A bandeira da cidade deve ser arvorada diariamente, por todos quantos sentem e vivem a Guarda, pensando globalmente e não se circunscrever a intervenções articuladas com calendários políticos ou pessoais; não devemos ser “socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados”, na expressão de Miguel Torga.

É importante que contrariemos este estado de coisas, reivindicando soluções, apelando à união de esforço e à procura dos melhores planos/estratégias no sentido de serem recuperados, salvaguardados e utilizados esses edifícios seculares, elementos integrantes do ex-libris da Cidade da Saúde. Tudo é ousado para quem a nada se atreve”, escrevia Pessoa. Haja firmeza na ousadia e salvaguardemos um património ímpar da cidade e do país. E nada como uma visita ao local para nos apercebermos da vergonhosa realidade daqueles pavilhões do antigo Sanatório Sousa Martins, 118 anos depois da sua inauguração festiva a 18 de maio.

Amanhã pode ser tarde demais…

 

Hélder Sequeira

 

 

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publicado às 01:57

Ruínas do Sanatório: atentado à história local

por Correio da Guarda, em 17.10.24

 

Museóloga e investigadora, Dulce Borges elaborou no ano de 2000  o processo de classificação desse conjunto arquitetónico do ex-Sanatório Sousa Martins. Decorridos todos estes anos considera que “a ausência de interesse tem sido gritante, imperdoável e inaceitável. Os edifícios em completa ruína, além de constituírem um perigo permanente, são um verdadeiro atentado à história local”. Ao CORREIO DA GUARDA afirma que estamos perante “um dos maiores, se não o maior atentado patrimonial, cometido na Guarda, no último século.”

Natural da Guarda, Dulce Helena Pires Borges é licenciada em História e mestre em Museologia e Património Cultural; foi diretora do Museu da Guarda entre 1986 e 2012, tendo comissariado todas as exposições aí realizadas; entre 2018 e 2021 coordenou a Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço.O Museu da Guarda entre o passado e o futuro; Espaços e Colecções” é um dos seus trabalhos publicados, tendo inúmeros textos seus em diversos catálogos, livros e revistas, bem, como na imprensa regional e nacional. Atualmente coordena o Departamento do Património, Cultura e Turismo da Diocese da Guarda.

Nesta entrevista considera que na Guarda falta “uma política cultural estruturada”.

Dulce Borges_Correio da Guarda

O que representou para si o período em que esteve como diretora do Museu da Guarda?

Ter sido diretora foi apenas uma circunstância. Claro que os 26 anos em que exerci o cargo de diretora, inicialmente por nomeação, seguida de renovadas comissões de serviço e provimentos por concursos públicos, me enchem de orgulho.

No entanto, o que realmente esse exercício significou para mim foi um encontro com a história e com o património da região e, em particular, o da cidade. Foi também um enorme desafio à construção e implementação de formas de comunicar e contar, através da realização de exposições, edição de catálogos e outras publicações, bem como, através da dinamização, de forma sempre qualificada, dos espaços e das coleções, de áreas do saber e de partes dessa história utilizando o património à guarda do museu e, por vezes, outro de tutelas diferenciadas. Fui diretora, em total acumulação com as funções de conservadora, no que de abrangente esta carreira profissional representa.

Desempenhei funções no Museu da Guarda desde 1982 até 2017. Uma realização profissional e também pessoal.

 

Quais os trabalhos/projetos que mais gostou de desenvolver?

Houve, felizmente, muitos projetos que me trouxeram grande satisfação. Desde o programa de dinamização do património classificado do distrito que ao tempo era coordenado pelo Museu da Guarda, como a Sé da Guarda, as muralhas de Almeida, o Convento de Santa Maria de Aguiar e os castelos de Pinhel e de Trancoso, através de concertos e exposições temáticas.

Nestas funções realço, como de superior importância, a recolocação do retábulo em talha dourada na igreja do Convento de Santa Maria de Aguiar, que há décadas havia sido retirado e levado para o Mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia. Nesta dinâmica posso recordar, ainda, o sucesso que constituiu a implementação de uma rentável bilhética para subida aos terraços da Catedral. Os protocolos com o IPG que permitiram ao museu aceder a inovadoras tecnologias, de que destaco um protocolo de colaboração, no âmbito do qual foi realizada e disponibilizada uma Visita virtual à exposição permanente do museu e que ao tempo constitui uma verdadeira revolução na linguagem de comunicação!

No campo da produção e apresentação de exposições destaco apenas as que reputo de maior importância porque estabeleceram marcantes plataformas de comunicação com os diversos públicos e com investigadores: Exposição sobre a história do Sanatório Sousa Martins; a que estudou e divulgou a obra fotográfica de António Correia – Foto Hermínios, a exposição, depois itinerante, acompanhada de catálogo sobre a vida e  obra da artista popular Maria Barraca; a exposição, realizada em parceria com os Museus de Gão Vasco e Lamego, sobre o importante património exvotista existente nas respetivas dioceses, igualmente itinerante, com o titulo: Do Gesto á memória; a que foi realizada para comemorar os 800 de atribuição do foral à cidade: Guarda. História e Cultura Judaica, cujo catálogo mereceu, por parte da APOM, a atribuição do 1.º Prémio; a exposição integrada no Centenário da Implantação da República sobre Carolina Beatriz Ângelo, em que o catálogo foi igualmente vencedor do 1.º Prémio da APOM; a colaboração com o Instituto Arqueológico Alemão para realização de investigações no Cabeço das Fráguas, de que resultou a produção de um molde com a reprodução exata da inscrição que ali se encontra, com recurso a um scanner a laser, bem como, a exposição e o colóquio temático, projetos colaborativos bem conseguidos, que divulgaram o Museu da Guarda e as suas coleções no seio da comunidade cientifica europeia, conforme atesta a qualidade dos estudos realizados por aquele instituto e o painel de oradores participantes.

Dentro de uma abordagem à linguagem da arte contemporânea destaco a apresentação na Guarda da obra dos artistas plásticos Manuel Cargaleiro, Maria Keil, Bartolomeu dos Santos, Paulo Neves, Albuquerque Mendes, Júlio Cunha e ainda as três mostras, acompanhadas de catálogo, sobre a coleção particular de António Piné. A obra de artistas plásticos naturais da região como Eduarda Lapa, Evelina Coelho ou Abel Manta foram objeto de apresentação no Museu da Guarda. O concerto pioneiro, em 1989, de Pedro Caldeira Cabral. A primeira conferência proferida na Guarda pela historiadora Rita Costa Gomes em 1986 após a publicação do seu livro: A Guarda Medieval. Edições de catálogos ou outras publicações como A História da Música na Sé da Guarda, os estudos sobre Augusto Gil, a edição fac-similada do Foral do Jarmelo, os roteiros sobre o museu foram outras áreas de trabalho que ficam para as gerações futuras enriquecerem com novos estudos.

 

Houve algum projeto que não tenha conseguido implementar?

Se não implementei outros projetos que tinha em mente foi porque decidi, em 2012, no final da minha comissão de serviço, deixar a direção do Museu da Guarda por me encontrar fisicamente esgotada, na sequência de 30 anos a trabalhar sozinha sem a colaboração de qualquer outro técnico superior.

Durante mais de 30 anos o quadro de pessoal deste museu teve apenas a diretora como a única técnica superior. Fui eu que saí da direção por opção pessoal e não por qualquer outra razão. Considero hoje oportuna a decisão então tomada, pois ser-me-ia bastante difícil desenvolver um projeto museológico, com que me identificasse, inserida nas novas estruturas orgânicas que vieram tutelar os museus em geral e, em particular, o Museu da Guarda.

Recordo que, por via de uma nova política museológica nacional, iniciada exatamente nesse ano, o museu deixou de estar sob a administração da Secretaria de Estado da Cultura e foi perdendo prestígio e importância institucional ao passar, sucessivamente, para a dependência da Direção Regional de Cultura do Centro e, desde 2015, para a tutela da autarquia, ficando a sua atividade sujeita a determinadas vicissitudes que alteraram a missão que penso dever ser seguida pelo Museu da Guarda.

 

E quais eram as principais dificuldades que, enquanto diretora, encontrava no dia a dia do Museu?

Um quadro de pessoal exíguo, um orçamento deficitário, em que a verba anual era praticamente para despesas de funcionamento, com vencimentos e manutenção da atividade da estrutura junto do público, e sempre condicionada pela falta de um espaço para exposições temporárias e outras atividades. Perante esta dificuldade, e numa tentativa de ultrapassar a situação, havia uma rotação frequente entre uma parte da exposição permanente e as exposições temporárias que pretendíamos apresentar.

Nesta dinâmica há a salientar os colaboradores do museu, sempre empenhados em garantir essa rotatividade, com elevada exigência de esforço físico necessário, obrigando a uma entrega e dedicação que são de realçar. Pessoalmente, também as tarefas eram sempre muito exigentes e trabalhosas pois, para além de não ter ninguém com formação académica que possibilitasse reflexões conjuntas sobre estratégias de investigação, também recaia sobre mim todo o trabalho de programação, investigação, produção e concretização dos planos de atividade anualmente apresentados e escrutinados pelo superior tutelar de Lisboa.

 

Como vê a relação das pessoas da Guarda, da região, com o Museu?

Não lhe sei responder, porquanto um espaço museológico, tal como eu o entendo, é substancialmente diferente de um espaço onde se desenvolvem múltiplas atividades, de diferentes áreas, nas quais não há necessidade de se aplicarem as práticas da museologia e da museografia, como hoje acontece.

 

Defendeu, por diversas vezes e em contextos diferenciados, a criação de um museu no antigo espaço do Sanatório Sousa Martins. O que faltou para esta ideia se concretizar e que impacto teria uma unidade museológica com o perfil idealizado na altura?

Como certamente se recordará, na sequência da realização pelo Museu da Guarda em 1994 da Exposição sobre a história do Sanatório Sousa Martins, ganhou interesse a criação de um museu sobre a história da luta contra a tuberculose. Para o efeito, em 1999, foi criada uma comissão pela administração do Hospital, à qual presidi e que viu o seu mandato interrompido por decisão de uma nova administração, entretanto nomeada.

Em fevereiro de 2005 foi noticiado que o Museu Nacional de Saúde ficaria sediado num dos pavilhões do extinto Sanatório Sousa Martins, correspondendo a uma unidade museológica de âmbito nacional, dependendo, por isso, a sua concretização da vontade do governo de então, e que, por razões que desconheço, nunca foi efetivada.

Tal promessa, a ter tido concretização, teria sido uma extraordinária mais valia para o panorama cultural da cidade, através de uma descentralização museológica que vinha potenciar e qualificar uma rede museológica que, criada em tempo certo, teria aportado à cidade e região novos públicos, novos investigadores, mais conhecimento.

Dulce Borges_Correio da Guarda 2

Acha que o conjunto do ex-Sanatório Sousa Martins é um caso perdido?

Elaborei o processo de classificação desse conjunto arquitetónico de carater assistencial em 2000, numa tentativa de salvaguardar, proteger e de alertar as instituições públicas, ministérios da saúde, da cultura e a própria autarquia, para esse importante marco da história da saúde em Portugal, mas, sobretudo, da história da cidade da Guarda nos campos da saúde, social, económico, cultural e ambiental e também na área de produção científica. O processo de classificação como CIP, Conjunto de Interesse Público, foi publicado na Portaria n.º 39/2014, DR, 2ª série, n.º 14 de 21 janeiro 2014, estranhamente, demorou 14 anos a ser concluído.

Como refere na sua pergunta trata-se, ou melhor, tratava-se, de um “conjunto” o qual valia sobremaneira, por esse mesmo aspeto que lhe dava unicidade. Era único no País! Senti sempre um enormíssimo distanciamento de todas as entidades. Os anos passaram, perdeu-se praticamente tudo, desde o património móvel e imóvel, ao paisagístico, florestal, lúdico, médico e científico.

A ausência de interesse tem sido gritante, imperdoável e inaceitável. Os edifícios em completa ruína, além de constituírem um perigo permanente, são um verdadeiro atentado à história local. Creio que é mesmo um dos maiores, se não o maior atentado patrimonial, cometido na Guarda, no último século.

 

A Guarda poderia ter outros museus? Quais?

Mais do que outras estruturas museológicas, que são sempre equipamentos culturais que, para funcionarem devidamente, absorvem grandes recursos financeiros, a cidade poderia ter, a partir da célula mãe (Museu da Guarda) alguns núcleos museológicos destinados a apresentar a herança judaica, a história comercial e industrial da cidade e a história da imprensa que, desde a segunda metade do século XIX, aqui teve enorme relevância.

Como podemos querer conhecer o outro se não nos conhecemos a nós próprios? Porque se desperdiçam energias na procura de falsas identidades? Há ainda muita história da Guarda por contar e é através dessas narrativas, que importa construir, que nos podemos diferenciar da repetição e da generalização. Falta potenciar a nossa identidade através de novas linguagens comunicacionais e criativas.

 

A par da sua atividade profissional desenvolveu trabalhos de investigação e tem escrito sobre temáticas diferenciadas. Sobre que áreas incidiu a sua atenção?

Gosto da história local, da arquitetura nomeadamente da industrial, do urbanismo, das artes decorativas e da história institucional.

 

Como vê a investigação que é ou tem sido feita sobre a Guarda? O que sugere?

A história da Guarda e da região nas suas múltiplas áreas tem sido objeto de muitos estudos de nível académico superior. Teses de mestrado, de doutoramento e investigações desenvolvidas por muitos centros de investigação têm tratado a nossa história.

Porém, uma boa parte de tais estudos não chega ao conhecimento da sociedade porque não têm uma divulgação ampliada através de edições. Mesmo na cidade se publicam muitas trabalhos de investigação, mas as atividades de promoção livreira não englobam este tipo de estudos.

Era importante o setor cultural do Município criar e desenvolver uma plataforma local onde se partilhassem essas informações, na qual uma equipa bem preparada, os autores e as entidades públicas e privadas tratariam de divulgar esses estudos.

 

É responsável, há cerca de dois anos, pelo Departamento do Património, Cultura e Turismo da Diocese da Guarda. O que representou este desafio e que balanço faz do trabalho até agora desenvolvido?

O desafio representou a continuidade do trabalho de conhecimento, investigação, conservação e divulgação do património histórico, artístico e cultural, agora centrado na matriz religiosa.

A identificação, o contacto com este vastíssimo património, a criação de normas visando a sua conservação e proteção, bem como, a sua divulgação, tem sido um trabalho muito estimulante porquanto nos reporta para a beleza da criação artística feita pelo génio humano na sua relação com o Divino, ao longo dos séculos. É uma tarefa que necessita de muitos meios, mas sobretudo de boas vontades alicerçadas numa convicta consciência patrimonial.

 

Como vê, atualmente, a Guarda em termos culturais?

É importante que coexista a democratização cultural e a democracia cultural. A democratização do acesso à cultura, garantida pela Constituição, é uma conquista de abril e, como tal, deve ser garantida.

Por outro lado, a prática da democracia cultural deve, para além do apoio ao associativismo, garantir a criação de dinâmicas culturais, com atenção à cultura popular, o apoio à criação artística, criação e manutenção de redes nas diversas áreas artísticas e culturais.

É nesta coexistência que, por vezes, se sente alguma falta de articulação e, também, a ausência de uma política cultural estruturada, fazendo com que as atividades aconteçam de per si, isoladamente, e sem um fio condutor.

 

Tem em projetos, trabalhos de investigação em curso?

Gostaria de continuar, e vou continuar, com pequenos trabalhos de investigação, já identificados, a concretizar em ritmo menos exigente.

 

 

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publicado às 19:41

Pavilhão Novo do Sanatório da Guarda: memórias…

por Correio da Guarda, em 31.05.24

 

Hoje, 31 de maio, completam-se 71 anos após a inauguração do denominado Pavilhão Novo do Sanatório que constitui, hoje, o mais antigo bloco do Hospital da Guarda.

Este ato, previsto inicialmente para 28 de maio de 1953, ocorreu três dias depois, com a presença dos Ministros do Interior e das Obras Públicas.

A imprensa da cidade deu especial relevo ao ato, apresentando o novo pavilhão como “um edifício gigantesco com 250 metros de comprido e com 350 leitos destinados exclusivamente a doentes pobres”.

Com a construção deste novo pavilhão, o Sanatório Sousa Martins procurou aumentar a capacidade de resposta às crescentes solicitações das pessoas afetadas pela tuberculose, ampliando assim o seu papel na luta contra essa doença.

O elevado número de doentes com fracos recursos há muito fazia sentir a necessidade de dotar esta conhecida unidade de saúde com novas instalações; pretensão que os responsáveis pelo Sanatório Sousa Martins tinham já manifestado ao Ministro das Obras Públicas, aquando da sua visita, à Guarda, em 1947. As obras do novo pavilhão foram iniciadas quatro anos depois.

Pavilhão do Sanatório da Guarda_ .jpeg

A entrada em funcionamento deste pavilhão era aguardada com compreensível expectativa, mormente por quem trabalhava no Sanatório Sousa Martins.

O seu diretor, Dr. Ladislau Patrício – que nesse mesmo ano deixaria essas funções, bem como a atividade clínica – definiu o edifício como “um novo e valioso instrumento na luta em defesa da saúde pública do país”.

Na Guarda viveu-se mais um dia festivo. “Cerca do meio-dia, a estrada que conduz ao Sanatório tornara-se um rio de gente”, noticiou o jornal A Guarda. O Pavilhão Novo constitui, de facto, um marco importante na história do Sanatório Sousa Martins, instituição que não pode, de forma alguma, ser dissociada da Guarda do século XX.

Recordar esta efeméride é sublinhar quanto é fundamental a salvaguarda desta memória viva onde, no presente, prossegue a atividade hospitalar. Conciliar os rumos exigidos pelo progresso com a especificidade deste edifício será contribuir para o reencontro com décadas em que a Guarda conquistou, justamente, a designação de Cidade da Saúde.

 

Hélder Sequeira

 

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publicado às 08:45

Uma vergonhosa realidade…

por Correio da Guarda, em 18.05.24

 

Hoje, 18 de maio, ocorre a passagem do centésimo décimo sétimo aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins que, durante décadas, funcionou na Guarda.

A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório teve lugar a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia.

Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (...), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (...)”. Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural da referida estância de saúde.

O Sanatório Sousa Martins foi uma das principais instituições de combate e tratamento da tuberculose em Portugal. A designação de “Cidade da Saúde” atribuída à Guarda em muito se fica a dever à instituição que a marcou, indelevelmente, no século passado.

A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas do nosso país, tendo a elevada afluência de pessoas deixado inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural.

A apologia da Guarda como centro urbano “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras, pois era “a montanha mágica” junto à Serra. Muitas pessoas (provenientes de todo o país e mesmo do estrangeiro) rumaram à cidade mais alta de Portugal com o objetivo de usufruírem do seu clima, praticando, assim, uma cura livre; não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos.

As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e a consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões; isto porque não havia, no início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento; situação que originou fortes preocupações sanitárias às entidades oficiais.

No primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, Lopo de Carvalho tinha já destacado os processos profiláticos usados na Guarda. Este clínico foi um dos mais empenhados defensores da criação do Sanatório guardense, do qual viria a ser o primeiro diretor.

O fluxo de tuberculosos que vieram para o Sanatório guardense superou, largamente, as previsões, fazendo com que os pavilhões construídos se tornassem insuficientes perante a enorme procura. O Pavilhão 1 (onde funciona atualmente a sede da Unidade Local de Saúde da Guarda) teve de ser aumentado um ano depois, duplicando a sua capacidade.

Em 1953 um novo pavilhão (que ladeia hoje a atual Avenida Rainha D. Amélia) foi acrescentado aos três já existentes. O Sanatório Sousa Martins ganhou, consequentemente, maior dimensão e capacidade de tratamento de tuberculosos.

Pavilhão do Sanatório da Guarda .jpeg

Anotar a decrepitude dos antigos pavilhões, o perigo eminente de derrocada (ou outras eventuais ocorrências) e a passagem dos 117 anos após a inauguração deste Sanatório, não é um mero exercício de memória ritualista. É evidenciar o estado lastimoso em que se encontra o património físico de uma instituição com merecido relevo na história da saúde e da medicina em Portugal.

Um Sanatório ligado também à solidariedade, à cultura e à história da radiodifusão sonora portuguesa, mercê da emissora (Rádio Altitude) aqui criada em finais da década de quarenta do passado século.

Muito se tem falado do estado de abandono do edifício do Hotel Turismo, e da morosidade de um projeto que devolva à cidade a possibilidade de se rever naquela emblemática unidade hoteleira. Ao longo dos anos não têm faltado anúncios, intervenções, ideias, adiamentos de decisões, promessas…a maior visibilidade deste edifício, em pleno centro da cidade e em frente aos Paços do Concelho suscita, naturalmente, mais comentários e lamentações.

Em contrapartida, e embora a escassa distância – hoje também numa reconhecida centralidade – os históricos pavilhões Rainha D. Amélia e D. António de Lencastre continuam, apesar de sucessivos alertas e artigos publicados, a ser desprezados, esquecidos.

Pavilhão D. Amélia.jpeg

A sua recuperação permitiria que fossem utilizados para fins assistenciais ou outros; houve já projetos para a criação de um espaço museológico no Pavilhão Rainha D. Amélia, para a valorização do património florestal da antiga cerca do Sanatório; em 2001/2002 foi elaborado “um projeto para o Hospital da Guarda, que englobava o Pavilhão D. Amélia para as Consultas Externas, acoplado com outro pavilhão moderno. O pavilhão D. António de Lencastre estava destinado à parte administrativa, fazia parte de um complexo para a parte administrativa, acoplado a outros espaços”, como nos disse o Dr. José Guilherme (que dirigiu o Hospital da Guarda), em entrevista publicada na Revista Praça Velha. Nos últimos anos outras ideias foram surgindo, para utilização desses edifícios, sem que tivessem qualquer concretização até à presente data.

O abandono e degradação dos antigos pavilhões do Sanatório Sousa Martins não dignifica uma cidade que se quer afirmar pela história, pela cultura, pelo ensino, pelo turismo, pela qualidade do seu ar, pela sua localização…

Sanatório Sousa Martins - Guarda - foto HS.jpg

A bandeira da cidade deve ser arvorada diariamente, por todos quantos sentem e vivem a Guarda, pensando globalmente e não se circunscrevendo a intervenções articuladas com calendários eleitorais, agendas pessoais ou comentários de circunstância, no plano do politicamente correto; não devemos ser “socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados”, na expressão de Miguel Torga.

É importante que contrariemos este estado de coisas, reivindicando soluções, apelando à união de esforço e à procura dos melhores planos/estratégias no sentido de serem recuperados, salvaguardados e utilizados esses edifícios seculares, elementos integrantes do ex-libris da Cidade da Saúde.

“Tudo é ousado para quem a nada se atreve”, escrevia Pessoa. Haja firmeza na ousadia e salvaguardemos um património ímpar da cidade e do país. E nada como uma visita ao local para nos apercebermos da vergonhosa realidade daqueles pavilhões do antigo Sanatório Sousa Martins, 117 anos depois da sua inauguração festiva a 18 de maio.

Amanhã pode ser tarde demais…

 

Hélder Sequeira 

 

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Dia Mundial da Tuberculose

por Correio da Guarda, em 24.03.24

 

Dia Mundial da Tuberculose_n.jpg

O Dia Mundial da Tuberculose é hoje (24 de Março) assinalado. Este dia comemora a data em que Robert Koch, no ano de 1882, anunciou a descoberta do Mycobacterium tuberculosis, o bacilo que causa a tuberculose (TB).

Apesar de ser uma doença evitável e curável a TB “permanece como um importante problema de Saúde Pública". Recorde-se que o Sanatório Sousa Martins, inaugurado na Guarda em 18 de Maio de 1907, foi uma das principais unidades de saúde de Portugal no combate contra a tuberculose.

A designação de “Cidade da Saúde”, atribuída à Guarda, em muito se fica a dever a uma instituição que a marcou indelevelmente, ao longo de sete décadas, no século passado. Embora a situação geográfica e as especificidades climatéricas associadas tenham granjeado à Guarda esse epíteto, a construção do Sanatório Sousa Martins certificou e rentabilizou as condições naturais da cidade para o tratamento da tuberculose, doença que vitimou, em Portugal, largos milhares de pessoas.

A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas de Portugal, afluência que deixou inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural. A apologia da Guarda como localidade “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras da época. Esta cidade começou a ser “a montanha mágica” junto à Serra, envolta ainda na bruma da atração e do desconhecido, palco frequente do magnífico cenário originado pela neve, que bem se podia transpor para o quadro descrito por Thomas Mann, no seu conhecido romance. Muitas pessoas vinham para a Guarda com o objetivo de usufruírem do clima de montanha, praticando, assim, uma cura livre, não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos. As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões, dado não haver, de início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento.

 Esta situação desencadeou fortes preocupações nas entidades oficiais da época. Em 20 de Outubro de 1897, o Governador Civil da Guarda, José Osório de Gama e Castro, tornou público um Edital/Regulamento relativo às “Providências Prophiláticas contra o contágio da Tuberculose”. O referido regulamento ditava normas concretas para os “donos ou gerentes das hospedarias,” bem como para aos proprietários de casas alugadas, onde não podiam ser recolhidos “promiscuamente indivíduos sãos e doentes”.

Em 1895, realizou-se o primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, dirigido por Augusto Rocha. Nesse congresso, Lopo de Carvalho (que viria a ser o primeiro Director do Sanatório Sousa Martins), já uma eminente figura da Medicina, discursou sobre os processos profiláticos usados na Guarda. Lopo de Carvalho foi um dos mais fervorosos defensores da criação do Sanatório – de que, aliás, viria a ser o primeiro diretor – o que aconteceu por decisão da Rainha D. Amélia, Presidente da Assistência Nacional aos Tuberculosos (ANT), instituição criada em 26 de Dezembro de 1899.

 A história da luta contra a tuberculose, em Portugal, cruza-se, assim, com a história da Guarda; um registo que deixamos a propósito da comemoração do Dia Mundial da Tuberculose.

 

Hélder Sequeira

 

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publicado às 13:08

Rádio Altitude: 75º aniversário

por Correio da Guarda, em 25.07.23

 

No dia 29 de julho de 1948 começaram na Guarda as emissões oficiais da Rádio Altitude, uma das mais antigas estações portuguesas que tem mantido a mesma designação e emissões contínuas a partir dessa data.

Rádio Altitude - Microfone antigo - HS.jpg

Esta emissora “iniciou a sua sessão e, com ela, a sua vida oficial transmitindo depois do disco indicativo da estação, a saudação Salvé Rádio Altitude! proferida pela menina Aurora da Cruz, que foi escolhida para madrinha do Posto Emissor. Falou, em primeiro lugar, o Sr. Carlos Alberto Pereira, Vice-Presidente da Caixa Recreativa, que – anunciado pelo locutor de serviço com palavras de justa homenagem e consagração – começou por dizer: Rádio Altitude, posto emissor deste Sanatório, vai ser inaugurado oficialmente, depois de um período em regime experimental”. Assim noticiou o Bola de Neve, um jornal editado no Sanatório Sousa Martins.

Como escrevemos no livro “O Dever da Memória – Uma Rádio no Sanatório da Montanha” (publicado em 2003), a Rádio Altitude é uma emissora com interessantes particularidades, originada no seio das experiências radiofónicas que ocorreram no Sanatório Sousa Martins, cerca de 1946. Nessa altura, as rudimentares emissões circunscreviam-se ao pavilhão do Sanatório onde estava concentrado o grupo de doentes (de tuberculose) pioneiros deste projeto; apenas com a construção de novo emissor foi ganhando dimensão a aventura radiofónica.

No ano de 1947, o médico Ladislau Patrício (segundo diretor do Sanatório Sousa Martins), aprovou (a 21 de outubro) o primeiro regulamento da emissora, onde estavam definidas algumas orientações muito claras sobre o seu funcionamento; em finais desse ano as emissões já eram escutadas na malha urbana da Guarda. O início oficial das emissões regulares ocorreu, como atrás foi dito, em 29 de julho de 1948; um ano depois (1949) foi-lhe atribuído o indicativo CSB 21, identidade difundida por várias décadas.

Luis Coutinho_Rádio ALTITUDE .JPG 

Luis Coutinho num dos estúdios iniciais da Rádio Altitude.

 

A propriedade do primeiro emissor pertenceu, inicialmente, à Caixa Recreativa dos Internados no Sanatório Sousa Martins e mais tarde ao Centro Educacional e Recuperador dos Internados no Sanatório Sousa Martins (CERISSM). Com a criação do CERISSM pretendeu-se auxiliar os doentes, especialmente no que dizia respeito “à sua promoção social e ocupação dos tempos livres”. Aliás, foi no seio dos sanatórios que surgiram originais projetos radiofónicos – como seja a Rádio Pólo Norte (maio de 1939) no Sanatório do Caramulo, e a Rádio Pinóquio, no Sanatório das Penhas da Saúde (Covilhã), para referirmos os mais próximos. Noutros contextos, nomeadamente geográficos, foram instituídas outras emissoras, de âmbito regional ou local; em maio de 1948 o Posto Emissor do Funchal tinha iniciado as suas emissões e já no ano anterior, mês de outubro, tinha começado a emitir oficialmente a Rádio Clube Asas do Atlântico (com o indicativo CSB-81).

Na Guarda, o CERISSM foi uma autêntica instituição de solidariedade; para além de viabilizar a afirmação e implantação da Rádio Altitude, desenvolveu uma vasta obra assistencial, sobretudo sob o impulso do médico Martins de Queirós, (o quarto e último diretor do Sanatório guardense).

Em 1961, mediante autorização oficial, a Rádio Altitude passou a ter como suporte económico-financeiro as receitas publicitárias, que em muito contribuiriam para o auxílio dos doentes mais carenciados. As emissões da rádio guardense evoluíram, ao longo das primeiras décadas em função das disponibilidades técnicas, dos recursos humanos e financeiros, mas encontrando sempre no, crescente auditório, uma grande simpatia e um apoio incondicional.

Programa SONS DA MADRUGADA.jpg

Até 1980 a Rádio Altitude emitiu na frequência de 1495 Khz, em onda média (abrangendo não só o distrito da Guarda, mas igualmente os distritos de Viseu e Castelo Branco e algumas das suas áreas limítrofes), altura em que a sua sintonia passou a ser feita no quadrante dos 1584 khz. Após 1986, e com a liberalização do espectro radioelétrico passou a emitir também em frequência modulada (FM), em 107.7 Mhz, alterada, em 1991, para os 90.9 Mhz, que mantém na atualidade.

No ano de 1998, depois de ter sido determinada a extinção do Centro Educacional e Recuperador dos Internados no Sanatório Sousa Martins, foi decidida a realização de uma consulta pública, com vista à “transmissão da universalidade designada Rádio Altitude”, considerada a “única estrutura em funcionamento do ex-CERISSM”. A estação emissora entrou assim, com a sua aquisição por parte da Radialtitude–Sociedade de Comunicação da Guarda, num capítulo novo da sua existência, mantendo a ligação física ao antigo espaço do Sanatório Sousa Martins, hoje designado Parque da Saúde.

Celebrar o 75º aniversário das emissões regulares da RA é lembrar que estamos perante uma rádio muito especial para a Guarda e região da beira serra, sendo uma inquestionável referência na história da radiodifusão sonora em Portugal. Uma rádio de afetos, memórias, vivências, dedicação, serviço público, criatividade, formação, espírito solidário. Uma rádio que, sem sombra de dúvidas, permanece na memória coletiva das gentes beirãs.

Esta é uma emissora associada a muitas vozes e rostos, a sonhos, diferenciados contributos, afetos, ideias, originalidades, presenças e solidariedade. A sua génese, a longevidade, o percurso ímpar e a matriz beirã conferem-lhe um estatuto especial, transformando-a num ex-libris da Guarda.

Este é o tempo de honrarmos os múltiplos contributos pessoais e institucionais que foram engrandecendo a RA, sem cairmos em atitudes derrotistas ou de confronto estéril; privilegiando, obviamente, uma postura de crítica construtiva, afirmada objetivamente e protagonizada sem tibiezas ou sob a capa do anonimato.

Escrevemos sobre uma rádio com um historial ímpar; uma estação por onde passaram muitos profissionais e colaboradores; uma emissora que foi uma autêntica escola de rádio e jornalismo, laboratório de muitos projetos radiofónicos, de que o Escape Livre (o mais antigo programa sobre automobilismo em Portugal) é um excelente exemplo.

É toda uma história que implica uma maior responsabilidade a quem faz, atualmente, esta rádio. Desejamos, muito sinceramente, que a efeméride assinalada seja um marco de reafirmação da rádio, uma celebração das suas potencialidades, a entrada numa fase de conquista do futuro, mantendo a essência da rádio, uma atitude profissional, pluralismo, qualidade de conteúdos programáticos e plena consciência da eminente função social

Parabéns à Rádio Altitude !

 

Helder Sequeira

 

 

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publicado às 08:30

O esquecimento da história da cidade...

por Correio da Guarda, em 18.05.23

 

Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (...), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (...)”. Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural do Sanatório Sousa Martins.

Pavilhão Lopo de Carvalho.jpg

O dia 18 de maio de 1907 constituiu uma das mais imponentes jornadas festivas da Guarda, marcada por um expressivo envolvimento coletivo que importa evocar, pois nesse já longínquo dia abriu-se um novo período da história citadina com a inauguração de duas importantes estruturas de saúde.

Esta cidade, se por um lado ficou dotada com um moderno Hospital (tutelado pela Misericórdia), por outro iniciou – através do Sanatório – uma eminente atividade médica e assistencial que a colocou nos roteiros internacionais das estruturas de saúde vocacionadas para o combate à tuberculose.

O impacto económico e cultural destas duas instituições (Sanatório Sousa Martins e Hospital da Misericórdia da Guarda, a que seria atribuído o nome do então Provedor, Dr. Francisco dos Prazeres) fez-se sentir ao longo de várias décadas, como tem sido reconhecido e evidenciado em vários trabalhos já publicados. Nessa época conjugaram-se na Guarda uma série de fatores que viabilizaram a concretização do sonho de alguns, alicerçado numa sólida determinação e na multiplicidade de atos solidários, apesar dos circunstancialismos político-sociais do Portugal do início do século XX.

A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório ocorreu a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia que materializou nesta instituição a homenagem a Sousa Martins, atribuindo-lhe o nome daquele clínico; a sua a ação e dinamismo já tinha sido evidenciada por ela numa intervenção pública, no seio da Associação Nacional aos Tuberculosos, realizada em 1889.

Voltando a 18 de maio de 1907, refira-se que nesse dia, cerca das 15 horas, o Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia foram inaugurar o novo edifício do Hospital da Misericórdia da Guarda, na atual rua Dr. Francisco dos Prazeres. Na capela da nova unidade hospitalar, teve lugar a cerimónia da bênção do edifício, pelo Arcebispo-Bispo da Guarda.

O fluxo de tuberculosos superou, largamente, as previsões, fazendo com que os edifícios do Sanatório Sousa Martins se tornassem insuficientes perante a procura; este era aconselhado a todos quantos sofriam de “tuberculose pulmonar, anemia, fraqueza organica, impaludismo, etc.”, como noticiava a imprensa local. Assim, não é de estranhar as preocupações dos responsáveis pelo Sanatório, mormente do seu terceiro diretor, no sentido de ser construído um novo pavilhão.

O que viria a acontecer com a construção de um novo edifício a ladear a rodovia que seguia da Guarda em direção a sul, hoje designada por Avenida Rainha D. Amélia. A inauguração esteve inicialmente agendada para 28 de maio, sendo remarcada para dia 31, deste mesmo mês, pelas 12 horas. O ato contou com a presença dos ministros das Obras Públicas e do Interior, tendo transmissão em direto “pelo Emissor Regional e pela Rádio Altitude”. Como noticiava a imprensa local, “no Sanatório ficam agora mais 450 camas, sendo 350 no novo Pavilhão e 100 nos outros”.

Atualmente, é chocante o estado de abandono e degradação dos pavilhões D. António de Lencastre e D. Amélia, assim como de outros de edifício que desempenharam um papel importante na atividade do Sanatório. São páginas da história da Guarda do último século que estão a ser apagadas e destruídas, perante a confrangedora insensibilidade de quem pode e deve inverter esta situação.

Pavilhão D. António de Lencastre HS  .JPG

Parece que a salvaguarda do nosso património, da nossa memória coletiva, da história de uma instituição marcante, da lembrança de um eminente corpo clínico e de devotados profissionais de saúde, das múltiplas iniciativas desenvolvidas no seio do Sanatório, dos projetos informativos e culturais aqui nascidos são coisas para esquecer, sob o risco de um interessante contraponto com a dinâmica do presente…ou com a falta de ideias e projetos.

Uma vez mais voltamos a reafirmar que o Parque da Saúde da Guarda não pode continuar a ter no seu seio uma memória agonizante de um Sanatório que constituiu um incontornável ex-libris da nossa cidade. Anotar a passagem dos 116 anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins não é persistir em exercício de memória ritualista, mas apelar para a preservação do património físico de uma instituição indissociável da História da Medicina Portuguesa, da solidariedade social, da cultura, da cidade mais alta de Portugal.

 

Hélder Sequeira

 

 

 

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publicado às 08:15

Para além do sonho interrompido…

por Correio da Guarda, em 21.01.23

 

É como um Santuário, a Guarda. Vêm aí acolher-se milhares de crentes da Religião da Esperança, pedindo o restabelecimento da saúde e da vida; a volta do seu sonho interrompido”. Escrevia José Augusto de Castro, no início do século passado, a propósito desta cidade e do seu Sanatório, que foi uma referência nacional.

A história, as sucessivas reivindicações de salvaguarda de um património ímpar têm merecido um impressionante alheamento ao longo de décadas; no passado ano foi dado a conhecer que os investimentos a realizar no Hospital Sousa Martins estavam centrados nas obras mais urgentes; na mesma altura a autarquia guardense mostrou a disponibilidade de colaboração com o objetivo de se conseguir-se a recuperação dos centenários pavilhões do Sanatório. Ao longo dos meses outras intenções, governamentais ou de responsáveis hospitalares, têm sido expressas, balizando promessas…

Os referidos pavilhões são símbolos de um período difícil em que se travou a luta contra a tuberculose. “Foram anos de luta pavorosa, /porém um dia o triunfo canta e reza”, anotou José Augusto de Castro num dos seus poemas.

Evocamos esta personalidade a propósito da passagem, amanhã (22 de janeiro) do 161º aniversário do seu nascimento.

Natural do concelho da Meda, concretamente da freguesia da Prova, José Augusto de Castro nasceu em1862; foi uma das principais figuras republicanas da Guarda

Durante a meninice aprendeu com o seu progenitor o ofício de alfaiate, profissão que lhe granjeou o sustento, a par do apoio à família, quando – com apenas 14 anos – foi para o Porto. Nessa cidade, fruto dos contactos que manteve, e do ambiente político que se vivia, foi crescendo a sua simpatia e interesse pela causa republicana.

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Em 1886 José Augusto de Castro voltou para junto da família, que residia, então, na aldeia do Vale (Meda), mas ali ficou por pouco tempo; decidiu partir para o Brasil, onde estava estabelecido o seu irmão mais velho. Os seus primeiros trabalhos jornalísticos são escritos na Baía, cidade onde singrou no ramo comercial.

Atingido pela tuberculose veio para a Guarda. “A crueldade do Destino não impediu que me envolvesse a bondade de amigos de nobilíssimo coração, a começar pelo Dr. Lopo de Carvalho, o ilustre médico, especialista da tuberculose, que tomou a peito arrancar-me da garra dilaceradora doença temerosa”. Grato ficou também ao Dr. Amândio Paul, segundo diretor do Sanatório Sousa Martins.

Este foi um período que o marcou profundamente, dele tendo ficado numerosas referências na sua produção literária. Na Guarda fundou, em 1904, “O Combate”; este jornal (que dirigiu até 1931) consubstancia a sua personalidade, o ideal republicano, o espírito combativo e a expressividade da sua escrita.

Tendo desempenhado as funções de Secretário da Câmara Municipal da Guarda (a par de outras atividades nesta cidade), José Augusto de Castro, após deixar de dirigir aquela publicação periódica, foi viver mais tarde para Coimbra, onde morreu a 13 de maio de 1942. Os seus restos mortais foram transladados, em setembro do ano seguinte, para a Guarda, a cidade que ele sempre distinguiu. “Outras terras mais lindas há, de certo…/Porém nenhuma fica assim tão perto/ do puro azul do céu de Portugal”.

Anotando, assim, uma efeméride, concluiremos dizendo que mesmo em tempo de céu cinzento e de enormes preocupações não devemos perder a serenidade, capacidade reivindicativa e o sentido das nossas responsabilidades, consentâneas com a gratidão para quantos pensaram, executaram e fizeram da Guarda a cidade da saúde.

É importante a salvaguarda da memória dos profissionais de saúde que ali trabalharam, mas também é justo honrar e valorizar – pensando o futuro, melhores condições, a preservação e o aproveitamento adequado das estruturas físicas, a fixação de clínicos – os atuais.

Hoje, mais do que nunca, é fundamental a cooperação de todos, para ultrapassarmos os problemas do presente, prepararmos (sem demagogia) o futuro da Guarda, recuperarmos o “sonho interrompido”.

 

Hélder Sequeira

 

 

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publicado às 12:00

Rádio em altitude...

por Correio da Guarda, em 18.01.23

 

O papel da Rádio como meio de comunicação, consciência e memória regional não deve ser esquecido, especialmente quando há uma inquestionável ligação afetiva entre as gentes beirãs e uma emissora – Rádio Altitude (RA) – com uma identidade distinta. Este é um ano particularmente importante numa imprescindível reflexão sobre passado, presente e futuro.

Em 2023 completam-se 75 anos após a inauguração oficial da RA, ainda com o indicativo CS2XT. Também este ano, e concretamente a 1 de fevereiro, passa o septuagésimo quinto aniversário da criação do jornal Bola de Neve. Dois projetos informativos e culturais que surgiram no seio do Sanatório Sousa Martins,

O Boletim Bola de Neve (como se definia inicialmente) surgiu a 1 de fevereiro de 1948, tendo como primeiro diretor o Engº Agrónomo Álvaro Martins da Silva. O periódico contou com a colaboração de diversas e eminentes figuras, nomeadamente Amorim Girão, Damião Peres, Nuno de Montemor, Miguel Torga, Joaquim Veríssimo Serrão, Gen. João de Almeida e Ladislau Patrício, entre outros.

Por outro lado, a atividade radiofónica desenvolvida, a partir de 1947, no Sanatório suscitou a preferência de muitos doentes. A rádio era – e é – um fascínio contagiante, acrescido pelo facto de não ser normal a possibilidade de contactar, de perto, com uma emissora de radiodifusão sonora.

A maior parte dos internados, no Sanatório Sousa Martins, que eram admitidos na rádio, designada de “Altitude”, ocupavam-se quer na manutenção técnica dos equipamentos de emissão ou de estúdio, quer no apoio administrativo ou no arquivo de discos e registos magnéticos. Setor onde se podia verificar uma irrepreensível catalogação; apenas os doentes com melhores condições de saúde, e outras características exigidas, eram escolhidos para efetuarem locução ou apresentação de programas.

O Bola de Neve noticiava, na edição de 1 de abril de 1948, que a Caixa Recreativa do Sanatório Sousa Martins tinha adquirido um aparelho emissor. “Poderemos escutar dos nossos quartos as festas realizadas e deliciarmo-nos com música do nosso agrado direto e recrearmo-nos com crónicas de são oportunismo de propósitos inofensivos. Além de que a organização dos programas distrai e desperta curiosidade, Rádio Altitude é mais um elemento de fraternidade entre os doentes do Sanatório – e, em destaque, uma nova regalia da Caixa Recreativa”.

No longínquo ano de 1948 a Rádio Altitude apresentava-se como “Posto Emissor CS2XT” (mais tarde foi-lhe atribuído o indicativo CSB-21), emitindo no comprimento de onda dos 212,5 m e na frequência de 1495 Kc/s.

Rádio Altitude - Microfone antigo - HS.jpg

Frequência na qual começou a ser emitido o mais antigo programa de rádio dedicado ao mundo automóvel, e outrossim à segurança rodoviária.O “Escape Livre” – iniciado em 13 de fevereiro de 1973 – sendo um espaço emblemático da Rádio Altitude é também um original exemplo de longevidade no panorama da radiodifusão sonora portuguesa.

Idealizado por Luís Celínio, este programa surgiu, curiosamente, num ano em que, face à crise energética verificada nessa época, foram proibidas as provas automobilísticas. Ainda estudante do então Liceu Nacional da Guarda, Luís Celínio era já um fervoroso adepto do desporto automóvel; a idade impedia-o, contudo, de conduzir e mesmo a sua pretensão a um veículo de duas rodas foi, pedagogicamente, convertida a favor de uma máquina de filmar, como prémio pelos bons resultados escolares. Este equipamento, que lhe permitiu o registo de inúmeras provas automobilísticas, acabou por constituir o ponto de partida para alguns projetos na área da comunicação social.

No Liceu da Guarda conheceu outro jovem entusiasta pelos automóveis, Francisco Carvalho, que estivera ligado em Trancoso (onde residia com os pais) a uma rádio-pirata local; para a qual idealizara um programa sobre desporto automóvel a que pretendia atribuir o nome de Escape Livre. O plano não foi concretizado e sugeriu esse nome a Luís Celínio, para o projeto deste, a concretizar na Rádio Altitude.

Após algum tempo, depois dos indispensáveis contactos, com a direção (liderada pelo Dr. Martins de Queirós, igualmente diretor do Sanatório Sousa Martins) e com o encarregado geral da Rádio, o programa começou a ser emitido – em onda média – às terças e quintas-feiras, com uma duração de 13 minutos; dois anos depois passou a ocupar sessenta minutos semanais da emissão da rádio, inicialmente às quartas-feiras (entre as 18 e as 19 horas), depois às quintas-feiras entre as 11 e as 12h e, posteriormente, nesse mesmo dia no horário das 18 às 19 horas.

Certamente que estas e outras memórias vão ser evocadas no próximo mês, aquando da passagem de meio século após a primeira emissão do programa Escape Livre, a partir da cidade da Guarda de onde continua a irradiar semanalmente.

Nestas despretensiosas notas quisemos sublinhar três gratas efemérides e, de forma especial, a longevidade de uma estação de Rádio que não pode esquecer os seus novos desafios e desígnios. Em especial num ano que merece ser evidenciado, enquanto marco importante na história de uma das rádios pioneiras em Portugal. Facto que a Guarda não deve esquecer…

 

Hélder Sequeira

 

in O INTERIOR, 18_jan_2023

 

 

 

 

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publicado às 22:52

Emílio Aragonez: rosto da rádio e jornalismo

por Correio da Guarda, em 21.09.22

 

Emílio Aragonez, que hoje completa 88 anos, foi durante décadas uma das vozes mais populares das emissões radiofónicas feitas, em onda média, a partir da cidade mais alta de Portugal.

 

por Helder Sequeira

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Personalidade com profundas ligações à Rádio Altitude, Emílio Aragonez nasceu em 21 de setembro de 1934, em Portalegre. Para a Guarda veio com cinco anos. Posteriormente, face às contingências resultantes da atividade profissional do pai, foi viver para Cascais, Pinhel, Peniche e Seia, após o que ocorreu o regresso definitivo à Guarda.

Com onze anos começou a trabalhar na Ourivesaria Correia, na Guarda. “Fui para lá ganhar 80 escudos por mês e passados dois meses fui aumentado para cem”. As aulas no Liceu ficaram para trás, pois os horários não eram compatíveis com o trabalho; o estudo circunscreveu-se ao período da noite. Emílio Aragonez frequentou o Colégio de S. José, a Escola Comercial e Industrial e a Escola dos Gaiatos, nesta cidade.

Aos dezoito anos abriu o seu primeiro estabelecimento comercial, na Rua 31 de Janeiro. Três anos depois mudou-se para a Rua do Campo, instalando-se no antigo espaço da Espingardaria Sport, que pertencera a um antigo chefe da Polícia; iniciava-se um ciclo de atividade na área da relojoaria e ótica; contudo, circunstâncias diversas contribuíram, muitos anos depois, para o abandono da vida comercial e empresarial. Ficou, deste modo, aberto o caminho para uma dedicação total ao jornalismo e à rádio.

Desde os dezanove anos que mantinha, aliás, uma permanente paixão pela Rádio Altitude, onde começou a colaborar no início da década de cinquenta. “Foi aberto concurso para pessoas externas ao Sanatório, concorri e fui admitido. Para mim era um desafio. Trabalhava durante o dia e à noite ia para a Rádio, a apresentar discos pedidos, que eram imensos. Contudo isto representava o início da concretização de um sonho, de estar ligado à rádio e à informação”.

Nos primórdios da sua atividade radiofónica teve por companheiros alguns dos internados no Sanatório Sousa Martins. “Havia, naturalmente, muito receio deste contacto com os doentes”, temor a que não escapava a própria cidade. Os tuberculosos eram cuidadosamente evitados pela generalidade da população da cidade, onde, então, se via muita pobreza. “Recordo-me de haver largas dezenas de pessoas que se dirigiam ao Lactário para obterem o leite destinado à alimentação dos filhos; iam buscar a sopa à Cozinha Económica, na altura a funcionar noutras instalações. Aos dias de mercado, sobretudo, apareciam muitos rapazes e raparigas descalços e isso já diz muito sobre a realidade social”.

Nessa época, as emissões da Rádio Altitude eram à noite, tendo depois passado a existir um espaço na hora do almoço. “Comecei também a fazer algumas das emissões desse horário, mas o trabalho mais alargado era aos fins-de-semana, dado que alguns doentes faltavam; havia um que tinha um programa desportivo, outro era responsável por um programa vocacionado para as questões culturais e um outro realizava o “Vento do Norte”, que foi um programa muito polémico”.

Predominavam os programas de discos pedidos, os quais registavam uma permanente avalanche de solicitações, cujo atendimento se ia prolongando por semanas sucessivas. “Eram tantos os pedidos e o espaço tão reduzido que era colocado um disco num dia e outros em programas posteriores. Por vez para se ouvirem quatro dedicatórias tinha de se esperar um mês”, lembrava (numa entrevista que registámos há alguns anos) Emílio Aragonez, mais tarde rendido ao fascínio das reportagens.

Nesse período, e anos subsequentes, havia regras rígidas relativamente às emissões radiofónicas e, como aconteceu até ao 25 de Abril de 1974, a polícia política estava sempre atenta, e atuante. Mesmo assim, Emílio Aragonez desvaloriza essa interferência. “As notícias que eram transmitidas, nos primeiros tempos, eram baseadas nos jornais e estes já tinham passado pela censura”. O que não impediu diversas chamadas de atenção por parte do Administrador ou Diretor da Rádio, e a deslocação, por duas vezes, às instalações de P.I.D.E., contudo sem quaisquer consequências.

Uma delas foi “por causa de um disco que tinha sido transmitido e depois desapareceu; o disco tinha sido gravado em França e era de uma voz portuguesa, já não sei se era do Zeca Afonso ou do Adriano Correia de Oliveira”.

A seguir ao 25 de Abril, a estação viveu momentos de grande agitação e geraram-se tentativas de “tomar o Altitude”. “Alguns dias após a data da revolução cheguei a estar 24 horas sem poder sair da Rádio, por imposição do MFA, onde esteve uma força militar comandada pelo alferes Pardalejo” Ainda hoje não tem uma explicação cabal para esse facto.

Pessoa de improviso fácil, e anotações rápidas, Emílio Aragonez assegurava os diretos da rádio de uma forma atrativa, suscitando o interesse informativo, curiosidade e audição atenta. “Na década de setenta, quando Marcelo Caetano se deslocou a Manteigas, julgo que para inaugurar o edifício da Câmara, houve um atraso de mais de uma hora, em relação ao horário previsto. Como não havia possibilidades de desfazermos a ligação e voltar a retomá-la – os meios eram bem diferentes dos atuais – tive de aguentar a transmissão, recorrendo apenas a duas curtas entrevistas. O resto do tempo falei de Manteigas, da Serra, das potencialidades turísticas e de outras informações e descrições que fui considerando oportunas”.

A Rádio foi, sem reservas, uma grande afeição da sua vida, feita de trabalhos, desencontros, incompreensões silêncios, amarguras e felicidade; vida simultaneamente enraizada em convicções e em princípios, passando ao lado, de eventuais críticas ou atitudes injustificadas.

Ao longo de décadas, deu voz à notícia, trouxe à luz da ribalta questões tantas vezes ignoradas; desencadeou o confronto de opiniões, denunciou injustiças, foi porta-voz de múltiplas aspirações de terras e gentes. “Estive, sempre, na vanguarda da informação, sem nunca hipotecar a minha consciência profissional nem trair os meus princípios”.

Emílio Aragonez assumiu o jornalismo e a rádio sem nunca esquecer a função social subjacente; o que, aliás, foi sempre reconhecido pelos ouvintes, a quem nunca negou a sua presença, e voz, mesmo em situações nas quais motivos de ordem pessoal, o cansaço ou a doença aconselhavam repouso.

“Muitas vezes acabava por dormir na Rádio, nomeadamente quando vinha às tantas da noite de alguma reportagem e tinha de abrir a emissão no dia seguinte”. Quando a cidade acordava envolta em espesso manto de neve “a rádio chegava a abrir mais cedo e era a partir daí que praticamente se comandava a cidade. Era um trabalho de autêntico serviço público, com informações sobre os vários estabelecimentos de ensino, circulação nas estradas, funcionamento dos serviços públicos. Ouvir o Altitude era essencial”.

Sempre atento ao quotidiano, na sua memória circulam, volvidos estes anos, muitas imagens e sons que pertencem aos bastidores da rádio; fora do estúdio de emissão havia lugar a dramas individuais, sofrimentos, dificuldades a superar, batalhas contra o tempo, necessidade de discernir e graduar com rapidez aquilo que era matéria informativa e não mero adereço de projeções institucionais ou pessoais; ocorriam confrontos marcantes no percurso individual e profissional; impressões muitas vezes gravadas de maneira indelével, que não pactuam com o esquecimento.

Emílio ARAGONEZ _homenagem.JPG Emílio Aragonez no dia da homenagem que lhe foi prestada pelo Rotary Club da Guarda. Na foto (esquerda para a direita): António Martinho, Albino Bárbara, António José Teixeira, Emílio Aragonez, Helder Sequeira, Carlos Martins.

 

O nascimento de Emílio Aragonez para a rádio, e a projeção que alcançou através desta popular emissora, ocorreu na época das emissões em onda média, quando a frequência modulada estava longe de ser uma realidade na estação CSB-21, o indicativo atribuído à Rádio da mais alta cidade portuguesa.

A sua voz aquecia as noites guardenses, esbatia a solidão, aumentava progressivamente o auditório, despertando incontidas manifestações de simpatia. “Diziam-me que a minha voz era agradável e depois, também pelo que me é dito, tinha uma maneira muito peculiar de falar. Isto começou, realmente, nos programas da noite, quando a cidade precisava de companhia e a companhia era a rádio. Foram anos, anos e anos com a minha voz a entrar pela casa das pessoas”.

Por outro lado, Emílio Aragonez salientou-nos ter havido um largo período “em que os outros tinham um certo receio de levantar os problemas. Eu dei sempre a cara, mesmo sabendo que iria sofrer dissabores; não só eu como a minha família.” Mas não há lugar a arrependimentos, dizia-nos, há alguns anos, em tom inequívoco. Embora a faceta de jornalista seja a mais conhecida, era um intransigente defensor da música portuguesa, presença constante nos espaços radiofónicos por ele animados, sem cair no gosto medíocre.

A sua aparência descontraída, porventura mesmo descuidada, reflexo da sua peculiar forma de ser e do desprendimento pelos bens materiais, não raro originava humorísticos episódios, partilhados depois nos círculos de colegas e amigos, os quais facilmente lhe reconhecem mais virtudes do que defeitos.

A Rádio Altitude representou para Emílio Aragonez “praticamente uma vida toda. Uma pessoa que entra para ali aos 19 anos e fica lá até aos 68 obviamente que representa tudo”, como nos afirmava, sem hesitações. “Esqueci-me muitas vezes que tinha família, esqueci-me dos amigos e vivia para o Altitude. Era tudo para mim!...”.

Emílio Aragonez é uma memória viva da Guarda – das suas estórias e tradições – igual a si próprio, referência de um tempo cúmplice das ondas hertzianas, quais laços de solidariedade com a cidade e uma vasta região…

Parabéns, Emílio Aragonez!

 

 

 

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