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“As rádios locais continuam a ter futuro. Não deixando de se ancorar nas raízes que estiveram na sua génese, as rádios têm de se reinventar todos os dias, inovando sem perderem o essencial do seu carácter.”
Afirmou-nos João Amaro, um dos fundadores da Rádio Antena Livre de Gouveia (1984) e presidente da Assembleia Geral da Cooperativa de Radiodifusão que tem a titularidade do alvará da referida emissora.
João Amaro é hoje Presidente da Junta de Freguesia registando na sua atividade autárquica e política a passagem pelas funções de assessor do Presidente da Câmara Municipal de Gouveia (1986-2001) e de Chefe de Gabinete do Governador Civil da Guarda (2009-2011).
Antes da sua entrada para a vida política e autárquica, o nosso interlocutor de hoje, desenvolveu uma intensa e relevante atividade na área da comunicação social. Foi Chefe de Redação do extinto jornal “Voz de Gouveia” (1979-1982), delegado concelhio da ANOP e Agência LUSA (1980-1986); correspondente e colaborador de vários órgãos da comunicação social, regional e nacional, como o Jornal de Notícias, Jornal do Fundão, Rádio Altitude e Notícias da Guarda.
Contudo, a Rádio continua a merecer o seu entusiamo, evocando memórias, companheiros e considerando que os momentos mais difíceis “são apenas meros registos comparados com a felicidade que a rádio nos proporcionou.”
Como começou a Rádio Antena Livre?
A Rádio Antena Livre de Gouveia foi um "sonho tornado realidade" por um grupo de jovens gouveenses, unidos pela paixão da rádio e tudo o que ela podia proporcionar: dos novos gostos e opções musicais à divulgação dos acontecimentos locais, do simples prazer de comunicar à necessidade de proporcionar uma maior e melhor informação das nossas realidades; no fundo, projectar Gouveia e a região através de um genuíno projecto de afirmação de cidadania, naquela que foi considerada, há quase 40 anos, uma das maiores aventuras levadas a efeito pela juventude gouveense.
Neste sentido, as motivações não terão sido muito diferentes daquelas que mobilizaram e estimularam o aparecimento de iniciativas semelhantes que se multiplicaram por esse País fora, numa época e num tempo marcado pelo aparecimento das chamadas "rádios piratas".
Já agora, a talhe de foice, permita-se-me esta oportunidade para fazer alusão e prestar a devida homenagem àqueles que, em 1984, juntamente comigo, foram o grupo fundador da nossa, então, “rádio pirata” (alguns deles infelizmente já desaparecidos): o José Carlos Saraiva, o Costa Simões, o António Sario, o Luís Figueiredo o Nuno Santos, o Carlos Bicker, Manta Luís, obreiros de uma das pioneiras rádios locais no nosso distrito e que tinha por máxima “a onda livre da nossa terra”.
Quais as principais dificuldades que encontraram?
A principal dificuldade, mas talvez a mais estimulante, era a de se saber que a actividade de radiodifusão, na altura, era proibida a outros operadores que não fossem os "institucionais" há muito autorizados e instalados no espectro radioeléctrico. E como facilmente se adivinha, não há nada mais estimulante para a saudável irreverência da juventude do que fazer jus ao velho adágio de que "o fruto proibido é o mais apetecido"...
Digamos que a luta pela legalização da actividade da radiodifusão de âmbito local, durante quase cinco anos, foi a "dificuldade" que mais nos mobilizou, na altura.
De resto, são fáceis de supor os constrangimentos dos primórdios duma aventura que começa em moldes "artesanais": o primeiro emissor, de apenas 5 Watts de potência, é de fabrico caseiro, as emissões, experimentais, são feitas de forma "ambulante": numa furgoneta onde é instalado o emissor, alimentado a baterias, bem como o leitor de cassetes (os programas eram pré-gravados), entre demais aparelhos, hoje emitindo daqui, amanhã de acolá, tudo no intuito de fugir à fiscalização dos "tenebrosos" Serviços Radioeléctricos.
Quando a actividade - por força das centenas de estações do mesmo género e da mesma génese que se foram implantando por todo o País - apesar de proibida, passou a ser tolerada, a Antena Livre de Gouveia conheceu dois ou três lugares provisórios onde começou a fazer as suas emissões em directo, até que - com a legalização das Rádios locais, em 1989 - assentou definitivamente a sua actividade num espaço cedido pelo Município no Mercado Municipal e adaptado, para o efeito, graças a muito esforço e trabalho de muitos voluntários.
Obviamente que o apetrechamento técnico, para quem não dispunha de recursos financeiros - as únicas receitas provinham duma informal "liga de amigos da rádio" e do magro mercado da publicidade - foi a outra dor de cabeça permanente, já que pelo exercício da actividade ninguém era remunerado, todos trabalhavam "pro bono", todos colaboravam por "amor à arte".
Como foi a reação dos ouvintes ao projeto da Rádio?
Reação fantástica, como era previsível. Passar a ouvir na telefonia, assim de repente, vozes conhecidas que falavam do concelho de Gouveia, das coisas que aí aconteciam, dos desejos que queríamos que acontecessem, dar a vez e a voz a gente da comunidade, do artesão e do operário, ao sindicalista ao autarca, aos dirigentes associativos, às colectividades, criou um ambiente de audiência de tanta proximidade que eu até costumo dizer, por graça, que mais do que ouvintes, a rádio tinha "militantes".
E não imaginam a satisfação que me dava, ao sair de casa, ouvir os rádios da vizinhança sintonizados na "Livre", entrar no café e ouvir a mesma sintonia, em cada rua, cada bairro, cada lugar...
A programação manteve uma estrutura fixa ou foi ganhando novos contributos?
Depois da fase "rebelde", com a criação da Cooperativa que viria corporiza e enquadrar a atividade, com a legalização e instalação definitiva, o processo de afirmação e consolidação da Rádio obrigou ao cumprimento de determinados parâmetros, a começar por uma orientadora grelha de programação que desse coerência ao projeto.
Ou seja, a rádio deixou de ser o programa do João, da Rosa ou do António para passar a ter, apesar das especificidades de cada um, um fio condutor, uma oferta original, mas com compreensível uniformidade.
Foi, portanto, necessário adequar a atividade aos novos desafios que se lhe impunham, para além do seu enquadramento numa nova tipologia de gestão.
Por isso, também, a necessidade que houve de profissionalizar algumas áreas, nomeadamente a informação e a parte da manutenção técnica, sem se perder o cariz original do trabalho voluntário, com muitos “amadores” a desempenharem um papel muito profissional.
Quais os programas que tiveram mais audição?
Eu não queria ser juiz em causa própria (risos), mas o programa "Domingo Livre", um programa em directo, de 3 horas, aos domingos de manhã, de entrevistas, debates, inquéritos de rua e cobertura de acontecimentos, aberto à participação dos ouvintes, pontuado e amenizado com uma criteriosa seleção de música portuguesa e que eu, o Manta Luís e a Maria José Trabulo idealizámos e conduzimos ao longo de mais de 20 anos foi – perdoe-se nos a presunção – paradigmático.
E não sei até que ponto não teria sido o programa mais longevo da radiodifusão portuguesa... De resto havia muitos e bons programas, das mais diversas temáticas, bem concebidos e realizados e, por isso, sempre de audição garantida.
A área cultural era também uma preocupação por parte da equipa da Rádio?
Sem dúvida. Nem faria sentido uma rádio local não dar ênfase e cobertura a uma área que se revelava fundamental, que mais não fosse pela atividade desenvolvida pelo vasto universo associativo do concelho de Gouveia que contava com quatro Ranchos Folclóricos federados, seis conceituadas Bandas Filarmónicas e escolas de música, grupos corais, grupos de teatro, etc., etc., para já não falar da oferta cultural desenvolvida pelo Município através da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, do Museu Abel Manta, das exposições das Galerias João Abel Manta, do Teatro-Cine, entre outros.
Quais as melhores e as piores memórias?
O anúncio da aprovação do nosso projeto - quando estavam duas candidaturas a concorrer à única frequência disponível para o concelho de Gouveia - e a obtenção do competente alvará para o exercício da radiodifusão foi, estou certo, a maior das alegrias que guardo deste longo percurso.
Muitas outras recordações, de bons momentos, se não dessem um bom livro de memórias, dariam seguramente “pano” para um bom e alegre anedotário da rádio...
Memórias más, confesso, não há. As angústias financeiras com que nos habituámos a viver ou aquele vendaval que nos levou as antenas ou a trovoada que nos queimou uma válvula e nos deixou sem emissão por uns dias, faz parte..., são apenas meros registos comparados com a felicidade que a rádio nos proporcionou.
Há diferenças na Rádio que é feita atualmente? O que mudou mais radicalmente?
Se houve sector em que a evolução e inovação técnica e tecnológica mais rapidamente se notou, o da radiodifusão foi um deles.
Tudo aconteceu num ápice: dos pré-gravados da cassete e do cartucho, aos diretos com o vinil, substituído pelo CD e este pelo mini-disc e, depois, todos pelo digital, do mp3 até à informatização total do processo de produção e emissão.
A internet e as emissões on line passaram a ser uma nova potencialidade no mundo dos velhos e e novos operadores de radiodifusão. Tudo isto de há quarenta anos para cá e...parece que foi ontem…
As rádios locais continuam a ter futuro?
Essa mesma pergunta já se fez aquando do aparecimento da televisão. Essa pergunta já se fez quando as exigências deste nicho de mercado, muito denso e competitivo, na natural separação do trigo do joio, obrigou ao encerramento ou à venda de muitas estações locais. Essa pergunta continua a fazer-se e quero acreditar que a resposta será sempre sim, apesar dos muitos constrangimentos.
Sim, as rádios locais continuam a ter futuro. Não deixando de se ancorar nas raízes que estiveram na sua génese, as rádios têm de se reinventar todos os dias, inovando sem perderem o essencial do seu carácter, pensar mais em redes de parcerias sem abdicar da natural e saudável concorrência a que a atividade obriga, primar por mais originalidade dentro da sua própria autenticidade, fugindo ao “mais do mesmo” que começa a ser tão comum no panorama da comunicação social.
No fundo, continuando a comprovar a velha máxima, perfeitamente insubstituível, de que “a rádio conta, a televisão mostra e o Jornal explica”.
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