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Memória de um Sanatório...

por Correio da Guarda, em 18.05.17

 

    “O passado passou. O presente agoniza.” Estas palavras de Miguel Torga são uma legenda adequada para a imagem atual de dois dos emblemáticos pavilhões do antigo Sanatório Sousa Martins.

Sanatório - Pavilhão D. António de Lencastre -

     Neste contexto de elevação da língua e música portuguesa, e após um fim de semana de alegrias e emoções lusas, justifica-se uma breve nota sobre a importância da preservação da memória, e do património, de uma cidade que foi uma eminente âncora de esperança e futuro, na vanguarda da luta pela saúde.

    “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado”, dizia o historiador Marc Bloch: daí que, uma vez mais, anotemos uma efeméride e a importância de salvaguardarmos e rentabilizarmos os edifícios de uma instituição que teve projeção nacional e internacional, associando ao facto a mais alta cidade do país.

    Hoje, 18 de Maio, ocorre a passagem do 110º aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins, que foi uma das principais instituições de combate e tratamento da tuberculose, em Portugal. A designação de “Cidade da Saúde”, atribuída à Guarda, em muito se fica a dever a uma instituição que a marcou indelevelmente, ao longo de sete décadas, no século passado.

   A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas de Portugal, afluência que deixou inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural; a sua apologia como localidade “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras da época, pois era “a montanha mágica” junto à Serra.

   Muitas pessoas (provenientes de todo o país e mesmo do estrangeiro) subiam à cidade mais alta de Portugal com o objetivo de usufruírem do clima de montanha, praticando, assim, uma cura livre, não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos. As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e a consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões, dado não haver, de início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento; situação que desencadeou fortes preocupações nas entidades oficiais da época.

    Já no primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, Lopo de Carvalho (que viria a ser o primeiro Director do Sanatório Sousa Martins, e pai de outro conceituado clínico) destacou os processos profiláticos usados na Guarda; este médico foi um dos mais fervorosos defensores da criação do Sanatório que seria inaugurado a 18 de Maio de 1907 – completam-se hoje 110 anos – com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia.

   O fluxo de tuberculosos superou, largamente, as previsões, fazendo com que os pavilhões do Sanatório Sousa Martins (a autoria do projeto dos edifícios pertence a Raul Lino) se tornassem insuficientes perante a procura; o Pavilhão 1 (designado também de Lopo de Carvalho, onde está atualmente instalada a administração da ULS da Guarda) teve de ser aumentado um ano depois, duplicando a sua capacidade.

    Um novo pavilhão, que se juntou aos três já existentes, foi inaugurado em 31 de Maio de 1953; com este novo edifício (que ladeia a atual Avenida Rainha D. Amélia) o Sanatório Sousa Martins ganhou maior dimensão e capacidade de tratamento dos doentes.

    Anotar a passagem dos 110 anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins não é cair em exercício de memória ritualista mas sublinhar o estado em que se encontra o património físico de uma instituição, indissociável da História da Medicina Portuguesa, da solidariedade social, da cultura (pelos projetos que criou e desenvolveu) e da radiodifusão sonora portuguesa.

    É já tempo de novo tempo para ações concretas em prol da reabilitação e aproveitamento desta memória, agonizante, da Guarda do século passado...

 

                                                                                                                Hélder Sequeira

 

    (in O Interior, 18 Maio 2017)

 

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publicado às 07:45

Até o Anjo deixa de ser nosso...

por Correio da Guarda, em 22.09.12

 

     “Os homens só valem pelo que de bondade e verdade tragam aos outros homens, porque, uma ou a outra, não caíram nunca em terra estéril, nem mesmo quando tombam na indiferença de rochedos”. Assim escreveu, em 1911, Augusto Gil, nas páginas do semanário guardense que então dirigia.

     Estas palavras, e apesar de decorrido todo este tempo, continuam atuais. O autor da “Balada da Neve”, num texto que assinalava uma efeméride particularmente grata para ele, do ponto de vista ideológico, pretendia transmitir um sentido global a essa afirmação, sustentada na sua cultura e experiência.

     A verdade e bondade, as ideias abrangentes dos interesses gerais, os projetos credíveis, as regras moralizadoras e justas, a exigência e responsabilização, o reconhecimento da capacidade e profissionalismo, a atitude dialogante e compreensiva, o incremento dos contributos individuais em prol da eficácia dos serviços, a rentabilização cabal das potencialidades humanas e técnicas continuam a esbarrar em várias trincheiras: do individualismo, da mediocridade, das conveniências (sejam de que natureza forem), dos interesses político-partidários, do laxismo instalado (pese a difícil conjuntura que atravessamos) em tantos sectores.

     A frontalidade é inversamente proporcional à cobardia e, para muitos, a estagnação continua a ser preferível à mudança, pois importa garantir o equilíbrio mais conveniente, consoante o tempo e o lugar; por norma, a ostracização é a resposta para quem não acompanha a orientação das ondas ou manifeste, inequívoca e claramente, uma diferente forma de estar e pensar, competência, humanidade, novas alternativas, propostas diferenciadoras e credíveis.

     Tudo isto se pode verificar no dia-a-dia, na região, no país. O esquecimento da ética, a falta de integridade, a irresponsabilidade, a ignorância ou desrespeito pela lei, a falta de formação cívica e moral, a avidez pelo poder, o clientelismo ou as prepotências da mediocridade provocam um contínuo constrangimento na evolução da sociedade portuguesa; impedem a capitalização dos valores e das capacidades existentes ou convidam a “emigrar”...

     O passado e o presente têm inúmeras lições de determinação e de triunfo, sem ser preciso lançar o olhar para além-fronteiras com o objetivo de formular diagnósticos e aplicar terapêuticas.

    Há, desde logo, uma imperiosa necessidade de alterar mentalidades, atitudes e comportamentos, banir a intriga e a maledicência; fazer valer os direitos mas cumprir os deveres; aceitar e refletir sobre as ideias diferentes; saber dialogar; protagonizar, sempre, a verdade e a bondade, mesmo que, perante a força das marés, seja tarefa penosa e incompreendida.

     À semelhança do que ocorreu no país, a manifestação do passado sábado, na Guarda, foi uma demonstração de consciência cívica e democrática; contudo a intervenção cívica não pode ficar só por este tipo de ações mas deve servir para pressionar a resolução de problemas, exigir responsabilidades, reclamar melhorias, atuações com verdadeiro sentido profissional, decisões que permitam melhor fruição das nossas vidas, com qualidade, respeito, apoio e segurança.

    A Guarda encontra-se numa encruzilhada de incertezas e de esperanças; incertezas pelos projetos adiados, ou irremediavelmente perdidos; pelas promessas desfeitas, indecisões na defesa empenhada das questões fulcrais para a eficaz afirmação da cidade e suas instituições/serviços; pela subtil marginalização transmitida através do distanciamento, no calendário das opções, em relação à concretização dos justos anseios; pelas endémicas reticências à inovação, criatividade, rentabilização dos recursos e potencialidades.

     E neste contexto económico e social é importante que não abdiquemos de plataformas onde se pode ancorar o futuro, desde logo o turismo, o ensino, a cultura.

     Esta última área, por exemplo, alcançou meritória e inquestionavelmente, distinta projeção, que importa não interromper; um registo feito por insuspeitas personalidades, face à diversidade de propostas e iniciativas que, ao longo dos últimos anos, têm sido apresentadas, em vários domínios, na cidade da Guarda; uma realidade em relação à qual há ainda muita gente a passar ao largo, como se estivéssemos a confrontar-nos com desconhecidos eremitas ou doentias lucubrações, provocadas pela pureza do ar desta terra de altitude.

    Como escreveu Ladislau Patrício, “altitude não significa apenas uma certa posição física – situação dum ponto acima do nível do mar; traduz também uma posição moral – elevação da alma acima do comum, acima do charco lodoso da planície rasa, onde pululam a grosseria e a mediocridade”… A pujança cultural é, sem sombra de dúvidas, um eminente contributo para fortalecer a imagem da cidade que – por incúria de alguns – deixou amarelecer o epíteto de “terra da saúde” e esqueceu os seus mais expressivos símbolos.

     É urgente que se definam e materializem as melhores estratégias globais – tendo em mente o presente e o futuro - , se fomente a cooperação (a todos os níveis), se procure a resposta possível para os principais problemas, se fomente o empenho individual e coletivo, se baixem as bandeiras partidárias ou dos interesses de grupos, se assuma o espírito da Guarda.

    Caso contrário até o Anjo deixa de ser nosso...

 

 

     In "O Interior", 20/9/2012

 

 

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