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Sobre porta emparedada do conjunto arquitetónico que envolve o edifício do antigo Convento de S. Francisco (onde esteve instalado o Regimento de Infantaria 12 e agora funciona o Arquivo Distrital) existe um letreiro, enigmático e pouco conhecido até agora. Um recente trabalho de Dulce Helena Borges e José d'Encarnação veio revelar os “segredos” dessa inscrição e, ao mesmo tempo, alertar para a atenção que devemos ter com a nossa História e o nosso património.
O CORREIO DA GUARDA, deixa aqui, este interessante e oportuno estudo (já divulgado no site informativo Duas Linhas), felicitando os autores por mais um valioso contributo para o conhecimento do nosso passado.
Na cidade fundada por D. Sancho, após a atribuição de foral em 27 de novembro de 1199, existiram, ao longo dos tempos, vários edifícios de matriz religiosa que, por diversas razões, foram erguidos fora do perímetro amuralhado. Além do Convento de S. Francisco, encontramos, por exemplo, referência à existência de mais cinco igrejas medievais.
Foi esse convento fundado em 1236, no governo do segundo (?) bispo da Guarda, D. Vicente I. Construiu-se, por ser de ordem mendicante e tal como ao tempo era costume, fora da malha urbana, que começava então a ser delimitada pela continuada construção das muralhas, neste caso, no arrabalde sul da cidade medieval.
Há notícia de que as obras de edificação do convento franciscano, feitas a expensas dos moradores da cidade, em 1246 já estavam concluídas. Tinha capacidade para albergar 28 frades e parece ter sido, ao longo de séculos, essa a sua principal ocupação: acolher a comunidade monástica.
Já no que se refere à igreja conventual, sabemos que teve a proteção da fidalguia da Guarda, tendo ali sido sepultada D. Isabel de Pina, filha do cronista-mor do reino, Rui de Pina, e seus descendentes e, ainda, entre outras personalidades, ali repousaram os restos mortais da condessa de Linhares, D. Lopa de Sequeira. Embora D. Isabel de Pina tenha concorrido com verbas para dotar a igreja de melhores condições, tal não invalidou que, alguns anos depois, Filipe II, o Pio, tivesse lançado uma finta de 100$000 réis aos habitantes da cidade e seu termo «para restauro da igreja do Convento de S. Francisco», como se lê no respetivo documento.
Aqui se formaram muitos frades ilustres, figuras de grandes virtudes e santidade, de que importa dar destaque àquele que maior fama de santidade adquiriu, o beato Frei Pedro da Guarda, que faleceu no Funchal em 1505, tendo ficado conhecido como “Santo Servo de Jesus”. Sobre este frade, por ter fama de santidade, chegou a ser constituído um tribunal com vista a promover a sua beatificação.
Conta Carlos de Oliveira (Apontamentos para a Monografia da Guarda, Câmara Municipal da Guarda 1940, p. 254) que, em 1568, este convento mendicante foi objeto de reformas e sabe-se também – segundo Carlos Manuel Ferreira Caetano (p. 673 da História da Guarda, publicada o ano passado pela Câmara Municipal) – que, por volta dessa data, foi alvo de uma reconstrução, se não integral, muito próxima disso. José Osório de Castro, por seu turno, escreve – na p. 86 da sua preciosa obra, Diocese e Districto da Guarda: série de apontamentos históricos e tradicionaes sobre as suas antiguidades, algumas observações respeitantes à actualidade e notas referentes à cathedral egitaniense e respectivos prelados, publicada, em 1902, pela Typographia Universal, no Porto – que, em1600, «o convento teve notáveis restaurações, sobretudo na igreja que se fez de novo», segundo os cânones da arquitetura chã.
Depois da extinção das Ordens Religiosas, o Convento de S. Francisco passou a servir de instalação aos aquartelamentos militares da cidade, tendo tido obras de ampliação, entre outras alterações, com a construção, em 1868 e 1869, de uma casa anexa de grandes dimensões. Desde então, outras dependências foram construídas no recinto que outrora terá sido a enorme cerca dos frades.
Assim, no edifício que hoje nos é dado observar estão alojados, desde a década de 80 do século passado (1984), o Arquivo Distrital da Guarda, uma dependência do Ministério das Finanças, a GNR e a Liga dos Combatentes e é, sobretudo, o resultado das múltiplas intervenções arquitetónicas que, ao longo dos séculos, ali foram realizadas.
Uma característica arquitetónica dos conventos é a indispensável presença do claustro. Também aqui ele é observável e, pese embora o mesmo, segundo Carlos Caetano, não ser já o original, mas muito próximo do projeto inicial, apresenta planta retangular com arcadas de arco abatido e dois andares. Ao centro, o tanque com uma fonte de água, cuja estrutura é encimada por esfera armilar. No andar superior da face norte do claustro, identificamos uma cartela em forma de concha, onde está inscrita a data 1734. O edifício conventual desenvolve-se em torno deste claustro e apresenta, no lado norte, a igreja (há décadas sem restauro nem uso), de planta longitudinal, sendo observáveis, no seu interior, estruturas da primitiva igreja medieval.
A fachada principal do edifício do convento está organizada em dois andares. O corpo superior possui um janelão com uma composição visual bem conseguida, com os ornatos talhados em granito pouco exuberantes, que nos remetem para as características da arquitetura chã.
No piso térreo, uma ampla porta com arco abatido introduz-nos na galilé, por onde se acede à igreja e ao interior do convento. Esta fachada principal tem no topo norte um acrescento, muito tardio, ao qual se acede por uma varanda alpendrada, típica de arquitetura residencial vernácula. Ao nível desse piso térreo, e na parede que suporta as escadas desta varanda alpendrada, existe uma porta cega em cujo lintel mal se descortina uma inscrição.
foto de Dulce Borges
Que estará por ali escrito?
À semelhança do que por muitos sítios desse Portugal além acontece, tais inscrições antigas vão-se gastando, mercê da erosão das intempéries, ninguém se preocupou em delas dar conta quando ainda se liam bem e, hoje, quando não sucumbem sob as inclementes pancadas dum qualquer camartelo, ninguém lhes liga importância nem curiosidade tem em saber o que lá está escrito. De facto, nem observando-a de perto desta aqui algo se consegue decifrar!…
Contou-se atrás a história do convento, das suas vicissitudes ao longo dos séculos. E aqui o que se conta? Novidade haverá alguma para acrescentar?
Fotos: Dulce Borges. A epígrafe está por baixo da sede da Liga dos Combatentes.
Para nos ajudarem estão hoje ao nosso dispor, pela perícia de Alexandre Canha, técnicas fotográficas específicas que, sem necessidade de inoportunas e eventualmente deletérias escovas de limpeza que as letras poderiam estragar, trazem à luz do dia o que há longas décadas se não lia e de cuja mensagem não havia memória. Aí está, pois, o que ora se vê (bem hajas, Alexandre!):
CAZA DA ORDEM 3A q FES PARA SI ANO 1734
Ou seja: «Casa da Ordem 3ª, que fez para si. Ano de 1734».
Duas novidades, portanto, que, do anterior relato não constavam: a Ordem Terceira de S. Francisco ali construiu para si esta casa. E a segunda novidade: a coincidência da data com a que se lê na cartela do claustro. Uma história a refazer, quem sabe!?
E a conclusão necessária: o cuidado a ter com inscrições antigas. Importa não as estragar e, caso estejam bastante deterioradas já, o recurso a quem ainda as saiba ler revela-se fundamental. Quantas lápides sepulcrais das nossas igrejas sujeitas ao contínuo pisoteio dos fiéis não correm mui sério risco de serem, também elas, memórias a morrer?!…
Dulce Helena Borges
José d'Encarnação
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