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A história da Guarda está indissociavelmente ligada ao segundo rei de Portugal que há 824 anos atribuiu carta de foral a esta cidade. Hoje é evocada a outorga desse documento e comemorado o feriado municipal, sendo oportuno conhecermos um pouco da vida deste monarca, cuja estátua – deslocada há alguns anos para um recanto da Praça Luís de Camões – merecia um reposicionamento mais digno.
D. Sancho I, segundo rei de Portugal e cognominado como O Povoador, era filho de D. Afonso Henriques e D. Mafalda de Saboia. Nascido em Coimbra, em 11 de novembro de 1154, o herdeiro da coroa bem cedo ficou ligado à vida político-militar do reino português, com uma associação efetiva à governação a partir de 1172.
Dois anos depois, o futuro rei casou com D. Dulce de Aragão (filha da Rainha de Aragão e do Conde de Barcelona), continuando a assumir as responsabilidades decorrentes do seu estatuto real; em 1178 é D. Sancho que comanda uma expedição em território sob domínio muçulmano, incursão que chegou aos arredores de Sevilha.
Com a morte do pai, D. Sancho subiu ao trono em 6 de dezembro de 1185, sendo aclamado três dias depois na cidade de Coimbra. A reorganização do território português e a defesa das localidades junto às ainda indefinidas e instáveis fronteiras com os domínios de Leão e dos muçulmanos (a sul), foram duas das suas primeiras prioridades, que se articularam com a imperiosa necessidade de incrementar o povoamento e defesa das zonas conquistadas.
Assim, promoveu a vinda de colonos estrangeiros, doou terras e fortalezas às ordens militares, criou concelhos e mecanismos de administração pública, fomentou o surto económico e agrícola e concedeu forais a cerca de cinco dezenas de localidades, nomeadamente à Guarda, em 27 de novembro de 1199 (documento que segue o modelo do foral de Salamanca).
Antes desta data (1199), a Guarda confinava-se a uma pequena comunidade “guardada por uma pequena atalaia ou torre – uma guarda – que vigiava a circulação de gentes e bens que percorriam a via colimbriana, o principal eixo de penetração no planalto beirão”, como sustentou Helena da Cruz Coelho. A Guarda assumiu, deste modo, uma posição estratégica de vital importância na defesa da linha fronteiriça da época, protagonizando a centralidade de toda a vasta região envolvente, sobre a qual afirmava a sua influência direta; a sua notoriedade como polo urbano foi reforçada com transferência (entre 1201 ou 1202) da sede do Bispado da Egitânia, cimentando assim o seu estatuto de cidade.
Esta reorganização da jurisdição religiosa apoiou os propósitos régios ao nível do fortalecimento e valorização da zona fronteiriça. Com a conquista de Silves (que viria a perder algum tempo depois) em 1196, D. Sancho passou a intitular-se Rei de Portugal e dos Algarves.
A sua permanência no trono foi atravessada por diversas contendas militares, fomes e pestes, em especial no período entre 1192 e 1210. As lutas com o vizinho reino de Leão e sobretudo os constantes prélios com os almóadas (dinastia marroquina que dominava as terras da Península Ibérica sob alçada muçulmana) ocuparam muitos anos do reinado deste monarca português, que teve ainda de se debater com alguns sérios problemas levantados pelo clero (vejam-se os conflitos com D. Martinho Rodrigues, Bispo do Porto, e também com D. Pedro Soares, Bispo de Coimbra, com os quais se reconciliou no último ano do reinado).
A célebre cantiga de amigo “Muito me tarda / o meu amigo na Guarda”, foi durante muito tempo associada a D. Sancho I que a teria, segundo alguns autores, dedicado a D. Maria Pais Ribeiro (a célebre Ribeirinha, de quem teve seis filhos); os estudos mais recentes afastam-no da sua autoria dessa poesia, embora seja verdade que não foi alheio às necessidades de incremento cultural, como o comprova o apoio dado a alguns elementos do clero que estudaram além-fronteiras. D. Sancho I faleceu em Coimbra em 26 de março de 1211, tendo sido sepultado no Mosteiro de Santa Cruz.
A história da Guarda está indissociavelmente ligada ao segundo rei de Portugal pelo que o registo do seu nome merece, sobretudo em dia de feriado municipal, ser lembrado e respeitado.
Hélder Sequeira
Um pouco na linha daquilo que escrevemos em anteriores apontamentos, hoje não poderíamos deixar passar em claro uma personalidade com emblemática ligação à Guarda. Referimo-nos a D. Amélia de Orléans, última rainha de Portugal, falecida a 25 de outubro de 1951.
Esta cidade deve-lhe um dos seus principais ex-libris, de que hoje, infelizmente, restam simbólicas e degradadas estruturas arquitetónicas, denunciadoras do desleixo e indiferença das entidades competentes
O Sanatório Sousa Martins ficará perenemente ligado a D. Amélia pelo relevante papel que teve na sua criação; empenhada nas causas sociais, esta rainha dispensou particular atenção aos mais desfavorecidos, sendo, aliás, particularmente significativo o facto de o pavilhão destinado aos doentes mais pobres ostentar o seu nome.
Maria Amélia Bourbon e Orléans nasceu em Twickenham, arredores de Londres em 28 de setembro de 1865 (curiosamente o futuro marido, D. Carlos, nasceu também no mesmo dia, dois anos antes).
A filha mais velha de Filipe de Orleans (conde de Paris e chefe da Casa Real de França) e de Isabel de Montpensier, que se encontravam (à altura) exilados em Inglaterra, apenas foi viver para França no ano de 1871.
Nos anos seguintes, Amélia de Orléans viajou com frequência e frequentou os principais palácios das monarquias europeias; personagem culta, apreciava o teatro, a ópera, a pintura e a leitura, convivendo, em Paris, com os escritores mais eminentes da época. Em 1886 conheceu D. Carlos, herdeiro da coroa portuguesa, de quem veio a ficar noiva, nesse mesmo ano; o casamento ocorreu em 22 de maio, em Lisboa, onde cedo manifestou as suas preocupações face ao flagelo da denominada “peste branca”.
Eça de Queirós definiu-a como “senhora de grande e dedicada esmola. E a sua esmola não baixa majestosamente do trono, numa salva, entre alabardeiros. Ela própria a leva, sob um véu espesso, a todos os recantos (...); ama a caridade racional, que se organiza, se arma em instituição, derrama o bem por estatuto”. A sua atenção às questões culturais manifestou-se por diversas formas sendo a criação do Museu dos Coches Reais, em 1905, uma das mais expressivas traduções dessa postura.
Amélia de Orléans viveu em Portugal entre 1886 e 1910, num período social e politicamente muito complexo, em que soube superar muitas contrariedades e definir uma estratégia de auxílio às camadas sociais com menores recursos. A Assistência Nacional aos Tuberculosos, de que o Sanatório da Guarda foi a primeira unidade hospitalar, constituiu, nesta matéria, uma das obras mais marcantes da intervenção social da Rainha D. Amélia.
“Para a tuberculose como para outros tantos males, há meios na ciência para, se não os conjurar, ao menos diminuir os seus estragos e remediar os seus efeitos”, como afirmou, em 1900, numa das suas intervenções públicas. Na cruzada contra a tuberculose, a Rainha procurou, por vários meios, canalizar recursos financeiros para combater a doença; a receita da venda do livro “O Paço de Sintra”, escrito a seu pedido pelo Conde de Sabugosa, e que foi ilustrado com desenhos feitos por D. Amélia, foi um dos muitos contributos para essa causa, em relação à qual o Sanatório da Guarda se afirmou verdadeiro baluarte.
A Rainha D. Amélia, acompanhada pelo Rei D. Carlos, veio à Guarda em 18 de maio de 1907, aquando da inauguração do Sanatório a que atribuiu, como homenagem, o nome do médico Sousa Martins (que falecera em 1897, e de quem já falamos neste jornal em anteriores edições).
A vida da Rainha ficou tristemente marcada pelo regicídio ocorrido, em Lisboa, em 1 de fevereiro de 1908, de que resultou a morte do Rei D. Carlos e do herdeiro D. Luís Filipe, Príncipe da Beira; com a aclamação de D. Manuel II, como Rei de Portugal, a 6 de maio de 1908, D. Amélia passou a colaborar nos atos da governação.
Em julho de 1910, a Rainha, na qualidade de Presidente da ANT, veio de novo à Guarda, numa visita, muito discreta, ao Sanatório e à filha do Conde de Tarouca, que ali estava internada.
Implantada a República, em 5 de outubro de 1910, a Rainha D. Amélia foi forçada ao exílio; começa por se instalar em Woodnorton (Inglaterra), residência do irmão, e em janeiro de 1911 passou a viver em Richmond Hill. No verão de 1921 mudou-se para França; a nova residência situava-se em Chesnay (nas proximidades do Palácio de Versalhes), numa mansão designada por Château de Bellevue.
Em 1939 foi convidada por Salazar para vir para Portugal, mas a Rainha não aceitou e passou os anos da segunda guerra mundial em França, onde não esqueceria as suas ligações ao nosso país, tendo hasteado mesmo a bandeira portuguesa na sua residência. Seis anos depois, em maio de 1945, veio a Portugal e foi recebida de forma apoteótica; entrou na fronteira de Vilar Formoso a 17 de maio de 1945, na véspera de se comemorarem trinta e oito anos após a inauguração do Sanatório Sousa Martins.
A Rainha D. Amélia faleceu, em Chesnay (Versalhes) na manhã de 25 de outubro de 1951; o seu corpo seria transladado para Portugal, em março de 1952, tendo ficado no Panteão Nacional.
A Câmara Municipal da Guarda decidiu, a 5 de Dezembro de 1951, atribuir o nome da última rainha de Portugal ao troço da estrada nacional nº 18 que ladeava o Sanatório e o extremo da Rua Batalha Reis; dois anos depois, a autarquia guardense deliberou proceder à eletrificação da referida avenida, junto à qual, no interior de cerca daquele sanatório, foi inaugurado - a 31 de Maio de 1953 - o Pavilhão Novo (bloco da Unidade Local de Saúde que ladeia a Avenida Rainha D. Amélia).
Ao evocarmos a efeméride a que aludimos anteriormente, estamos a relembrar um importante período da história da Guarda e a projeção alcançada por esta cidade no plano nacional e internacional.
Hélder Sequeira
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