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António Gomes: artesão de afetos

por Correio da Guarda, em 24.11.24

 

António Manuel Gomes é um conceituado médico psiquiatra e igualmente um exímio artífice de palavras que florescem em textos de inegável recorte literário. Este clínico guardense – homem culto, observador atento, dialogante – nunca se negou a desafios ao nível da intervenção cívica e cultural, numa manifesta expressão de exemplar cidadania. Avesso a holofotes, nem sempre a sua atividade teve a justa e merecida visibilidade. “O reconhecimento, não o nego, afaga a alma e dá consistência à identidade” diz nesta entrevista ao CORREIO DA GUARDA quando questionado sobre a distinção que vai receber no dia da Cidade da Guarda, na próxima quarta-feira, a 27 de novembro. Homenagem que faz questão em distribuir com “os outros que são parte de mim”. Ao CG afirma que a escolha da Medicina não foi resultado de um “chamamento ou vocação”, mas cedo compreendeu que “não me tinha enganado no destino”. Considerando que “os êxitos, fracassos e problemas, são inerentes à vida de um médico”, António Manuel Gomes classifica, “em termos sincréticos” como “muito positivo um longo período do SNS em que as turbulências eram claramente menores e a relação interpessoal tinha outra densidade humana.”

Nascido nas Vendas da Vela, em outubro de 1954, António Manuel Gomes estudou na Covilhã e em Coimbra, trabalhou no Hospital Psiquiátrico do Lorvão, dirigiu o Departamento de Psiquiatria do Hospital Sousa Martins, integrou os corpos sociais da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários Egitanienses, foi fundador do grupo de Teatro à Vela e do grupo coral Recanto do Canto, tendo encenado três peças de teatro e sido o autor de contos e textos publicados em jornais e revistas.

 

António Manuel Gomes

Estudou a partir dos 7 anos na Covilhã. Qual a razão que o levou a ir para essa cidade?

Os meus pais sempre residiram na Covilhã. Foi por acaso e urgência que nasci nas vendas da vela, em casa dos meus avós maternos, onde a minha mãe se encontrava naquele dia, com 24 anos, e aconchegada no ninho original.

Fiz a quarta classe numa obra da fundação Melo e Castro, designada Associação Protectora da Infância Desvalida. Este longo e expressivo nome, resultava do facto de a escola dar resposta aos filhos das operárias e operários dos lanifícios; ao tempo já tinha cantina para as crianças.

Devo às preocupações do meu pai com o meu ingresso na escola primária, a descoberta de um tal professor Manuel Poeta. Conseguiu que eu entrasse naquela instituição onde, de resto, pelas mesmas razões de excelência do docente, também tive alguns filhos de industriais como colegas. Foi determinante no meu futuro escolar. Quando concluí a quarta classe foi-me atribuído o prémio de melhor aluno pela fundação Melo e Castro.

Foi ainda na Covilhã que concluí o sétimo ano do liceu, sendo na altura o único aluno que dispensou do exame de admissão ao ensino superior em todas as disciplinas.

 

Como via, nessa altura, a cidade da Guarda? Que contraponto fazia com a Covilhã?

As minhas deslocações à Guarda eram esporádicas. A viagem na camioneta do Tonico começava na Covilhã e acabava nas Vendas da Vela. Ainda assim recordo a Guarda como uma cidade aconchegada, de humanidade sadia, como uma extensão rural e telúrica que o meu avô me tinha ensinado.

A Covilhã, era um uivo de sirenes quase permanente. O corrupio dos operários e operárias, ora saindo, ora entrando, nas dezenas de fábricas de lanifícios, dava às ruas e às travessas um alarido enérgico e contagiante que me enchia a estreita paisagem da janela de casa.

 

O que representou a sua ida para Coimbra e como foi a adaptação à vida académica da cidade? A vivência na residência do Colégio de São Teotónio é um período com boas recordações?

As lágrimas de despedida de casa secaram depressa. Não ia só. Éramos vários colegas de liceu, dispersos por vários cursos, e já tínhamos laços consistentes. A residência universitária do colégio de São Teotónio deu-nos um conforto e um acréscimo de novas relações; as maluqueiras coletivas e as discussões no refeitório são ainda hoje retalhos da minha memória distante que muito prezo.

A Universidade de Coimbra, em 1972, mantinha o luto académico que já vinha dos 4 anos anteriores. Não havia praxe nem queima das fitas; as capas e batinas concentravam-se num número muito exíguo de estudantes e as conotações conservadoras eram vorazes.

António Manuel Gomes_médico _3

O ambiente académico era propício ao incremento de atividades culturais? Como viveu Coimbra em termos culturais?

Viver Coimbra antes, durante e depois do 25 de abril, foi um privilégio que tocou a poucos, mas calhou-me a mim.

O antes já era uma surdina de palavras proibidas e irreversíveis cujo contágio era imparável. Um dia, ao sair da minha primeira aula teórica de química médica, juntamente com mais três colegas, saiu do Nívea (Volkswagen da polícia) um agente que veio junto de nós e nos mandou dispersar. Éramos quatro e íamos almoçar à cantina. Era a própria polícia que, paradoxalmente, nos tirava a ingenuidade e incentivava à resistência.

O durante foi uma flutuação frenética entre a incredulidade e a esperança; mas o primeiro 1º de Maio tornou-se o grande clamor da irreversibilidade.

O depois, na academia, traduzia o país. As paixões despontavam numa fragmentação política de marcado pendor à esquerda. As derivas tornavam-se evidentes e as discussões descomprimidas e abertas inundavam as mesas dos cafés e as reuniões gerais de estudantes. No cinema, no teatro e nas palavras escritas, surgia um mundo novo até então desconhecido pela maioria de nós.

 

Quais as leituras e as músicas que ouvia mais nessa época? Os seus gostos alteraram-se?

As músicas eram partilhadas por todos e as descobertas eram permanentes. Woodstock operou uma viragem nos gostos e na liberdade. Os cantores de intervenção, portugueses e estrangeiros, eram obrigatórios nas noitadas de alegria e copos. Lembro-me de um opúsculo clandestino com letras do Manuel Alegre musicadas que era obrigatório em todos os encontros.

Ainda a propósito do poeta, sintonizávamos a rádio Argel, antes da revolução, e lá estava a sua voz inconfundível. Os meus gestos caminharam com o tempo e a idade, e ainda hoje são feitos de muitas partilhas e descobertas. Não fiquei ancorado nos deslumbramentos de juventude, mas ainda hoje são referências que partilho com os meus netos, e eles também gostam.

 

O que recorda de mais positivo e de mais negativo na sua passagem pela Universidade de Coimbra?

Vivi em Coimbra dos 17 aos 34 anos. Ao tempo, a academia era um amplo espaço de convívios e estímulo. A Praça da República era o grande pátio da universidade. Por ali deambulavam as figuras de referência das várias faculdades. Este borbulhar era fascinante, e todas as conversas nos guindavam para novos planos de descoberta e liberdade. Mesmo na discórdia, estava instalada uma alegria inaugural que contagiava a comunicação.

De negativo, talvez recorde momentos de tensão estudantil desencadeados por processos de manipulação e radicalismo, levados a cabo por correntes ideológicas múltiplas onde o padrão de alienação se instalava de modo acrítico e obstinado.

 

Formou-se em Medicina e especializou-se em Psiquiatria? Porquê esta opção?

Fui para a medicina por uma espécie de acordo de grupo entre alguns colegas de liceu. Não me lembro de sentir um chamamento ou vocação; mas cedo percebi que não me tinha enganado no destino.

A psiquiatria aconteceu pela influência específica e incentivo do doutor Manuel Lousã Henriques. Era uma referência de Coimbra em termos psiquiátricos, culturais e humanistas. Tive a sorte de o ter como assistente de psiquiatria quando fazia a cadeira, e quando acabava a aula ninguém tinha dado pelo passar do tempo. Aconselhou-me o Lorvão.

 

A partir da especialização como foi o seu percurso profissional? Que êxitos e que problemas registou, sucintamente, ao longo do período em que exerceu a sua atividade, no SNS? E que importância teve a sua passagem pelo Hospital do Lorvão?

A especialização decorreu no hospital psiquiátrico do Lorvão, onde 3 jovens psiquiatras residentes tiveram, pela abrangência, pelo entusiasmo, pelo arejamento e pela inovação, uma influência determinante na minha formação.

Os êxitos, fracassos e problemas, são inerentes à vida de um médico. Mas, em termos sincréticos, sinto como muito positivo um longo período do SNS em que as turbulências eram claramente menores e a relação interpessoal tinha outra densidade humana.

O facto de ter pertencido às gerações que prestaram o serviço médico à periferia, enraizou para sempre uma crença no recém-implantado SNS. Mas o curso dessa crença tem vindo a desagregar-se. As razões não cabem aqui nem são lineares; mas, o resultado final insatisfaz os doentes e desanima os profissionais de saúde. Não sei quando nem como nos vamos reencontrar.

 

O Hospital da Guarda diferenciou-se na área da Psiquiatria? As instalações condicionaram/condicionam a atividade médica?

Quando há 37 anos fui convidado, com o Paulo e o Antídes, para abrir um serviço de psiquiatria na guarda, a decisão não foi demorada. Inicialmente na Praça velha, como centro de saúde mental, sem serviços de internamento próprio, desenvolvíamos consultas em articulação com os 14 centros de saúde do distrito e os casos urgentes eram encaminhados para o internamento do Lorvão.

Quando passámos a ocupar as atuais instalações do departamento de psiquiatria, integrados no hospital Sousa Martins, sempre sentimos a casa e a causa como nossas. Fomos muitos e sucessivos a arregaçar as mangas. Talvez por isso nunca nos sentimos condicionados nem num espaço exíguo.

A psiquiatria tornara-se centrífuga e ainda continuamos a visitar no seu domicílio mais de 300 doentes por mês, em todo o distrito.

 

Que projetos não viu concretizados, em termos hospitalares?

Volvidos 37 anos, com novas realidades e ambições, lamento, sem hesitação, que não se tenha construído um novo departamento.

 

Como vê, atualmente, a saúde mental em Portugal? Há falta de recursos humanos e de unidades de tratamento e acompanhamento?

Penso, como em tudo, que já estivemos pior. Ainda assim há muitas assimetrias e a resposta não é linear.

A maior densidade populacional; novas patologias sociais de desenraizamento e deslaçamento afetivo; défice crescente de comunicação corpo a corpo; imputação de responsabilidades e deveres aos outros; eu sei lá… Mais do que problemas de saúde mental, há um caldo doentio que nos circunda e inquieta. Às vezes não são os percursos é o modo como se recorre aos recursos.

 

Acha que a recente pandemia agravou os problemas no contexto da saúde mental? Aumentou a conflitualidade social?

Nos idosos a pandemia teve um efeito devastador. Para além da morte, e sobretudo nos doentes institucionalizados, o embate nas funções cognitivas e motoras foi imenso e irreversível.

Nos restantes grupos etários, com a plasticidade inerente a cada idade, houve um claro acréscimo das doenças ansiosas e depressivas com fenómenos de antecipação e medo. As fobias obsessivas em menor expressão, assim como as patologias paranóides.

Quanto à conflitualidade social, sinto-a hoje teimosamente residente e sem carecer de pandemias para se alimentar.

 

Como aconteceu a sua ligação aos Bombeiros da Guarda? Que balanço faz desse período?

Foi o Pedro Lopes e o Álvaro Guerreiro que me convidaram para integrar uma direção. Depois fiquei mais de vinte anos. É uma casa que ficou a fazer parte de mim como de muitos outros que por lá passaram.

Os bombeiros são simultaneamente homens e mulheres com um imenso espírito de solidariedade e entrega, como “vidrinhos” de uma sensibilidade ressentida. É como se uma cristalização da adolescência lhes ficasse agarrada à pele. É essa mistura mágica que faz aquela casa e o sentido a que se propõe.

 

Acha que o voluntariado está em crise?

Esta pergunta acrescenta novas nuances à resposta anterior. A crescente e necessária profissionalização dos bombeiros para que se ajustem à sempre velha e nova realidade do fogo, conduziu ao decréscimo do voluntariado tradicional.

Ainda assim continuo a acreditar nesta determinação estruturalmente humana. Enquanto houver uma criança de olhos desorbitados deslumbrada com a enormidade elegante dum carro de bombeiros, o voluntariado terá sempre um fogo interior que o move. E todas as formas de voluntariado carecem desse fogo interior que anule o individualismo e o alheamento.

 

Está profundamente ligado à criação do grupo de “Teatro à Vela” e do grupo coral “Recanto do Canto”. O que representaram para si, e para a Vela, estes dois grupos e qual a projeção que tiveram?

O que representaram para Vela, talvez não me caiba a mim a avaliação. É preciso que o tempo aglutine a distância e as memórias. O que representou para mim é um desassossego enorme de vivências e emoções. Vou aglutinar-me: tinha regressado de Coimbra com a família; a Vela ainda lambia as feridas de cisões políticas estéreis; o Álvaro era mordomo e desafiou me a escrever uma peça; lembrei-me da adolescência na quinta dos meus avós; do Padre Amarelo me vir buscar para entrar no teatro; fui à procura dos “velhos” que eu tinha visto em palco quando garoto; todos me disseram que sim; esbocei o projeto e li-o em grupo; no final vi algumas lágrimas, talvez estivesse certo; depois foi meter no palco avós, filhos e netos; a Taverna comportava a vida; transformou-se numa peregrinação de alegria que nos ultrapassou (e a mim, sobretudo).

O Recanto do Canto veio mais tarde como um complemento de disciplina e organização. O Mário Barreiros e a sua tranquilidade gentil levaram-nos a quatro vozes numa polifonia que mais tarde emudeceu, mas ainda a oiço na memória.

 

Escreveu e encenou três peças de teatro. O que significa para si o teatro e como vê hoje, à distância de alguns anos, estas peças e o sucesso que alcançaram?

Sim. A Taverna (en)cantada; o Sagrado e o profano e a Cesta de fantoches. A Taverna durou mais de doze anos e somou cinquenta e quatro representações em vários pontos do país. Éramos saltimbancos de alegria. Ver avós, filhos e netos, no mesmo palco, era uma gratificação extraordinária. Três dos que então chamávamos bando de estorninhos, começaram com seis anos e são hoje atores profissionais. Disse muitas vezes que era melhor plantar um alfobre do que comprar couves.

O teatro é ver num palco uma amostra da vida ou a própria vida; com a luz e a sombra; o delírio e a crueza; o amor e a indiferença; a esperança e a solidão; nós e os outros ou, sobretudo, o que os outros têm de nosso e nós temos dos outros. O teatro é sobretudo esta escola de estética com poesia por dentro do corpo.

Sinto hoje que, quando escrevi a Taverna, era um artesão ingénuo dos afetos e ainda hoje, por entre as penumbras do tempo, não me sinto muito diferente de mim.

 

E como vê, hoje, a cultura na Guarda e no interior do país?

Se me reportar há trinta e sete anos, quando vim de Coimbra, a decadência é notória ainda que com algumas flutuações. Então esta cidade fervilhava e nunca me senti órfão de Coimbra.

Assisti na Guarda a múltiplas manifestações culturais na sua mais diversa expressão. Esta dinâmica tinha o dedo e a obstinação do Américo Rodrigues. Há razões também de natureza demográfica e de modificação de hábitos.

As redes sociais não nos grudavam aos pequenos ecrãs como uma crescente clausura de alienados. Ao tempo, a desoras, com um grupo de amigos, para beber um fino no Zé da Praça ou no Caçador, era preciso ter a sorte de um lugar.

António Manuel  Gomes_médico_ 2_

Ainda “permanece amante das palavras vadias”, como referia numa sua nota biográfica?

Permaneço, ainda que com menor densidade de momentos que há umas décadas atrás. Talvez me tornasse mais seletivo e conciso.

Normalmente escrevo por impulso e obedeço a chamamentos interiores ligados às coisas da vida (ou à vida das coisas). Isolo-me numa casa antiga, com a lareira por dentro da salamandra de inverno e com uma grande amplitude de músicas de referência a flutuar no espaço.

Depois é começar a ligar a filigrana das palavras com a delicadeza que elas merecem: são por natureza muito solidárias e atraem-se com a mesma multiplicidade de sentimentos que os humanos. Às vezes fazem-me chorar e isso significa que se agarraram a mim pela ponta dos dedos

 

Possui uma diversidade de contos e textos publicados em jornais e revistas. Para quando uma obra que reúna essa produção?  E para quando um livro novo?

Nunca esteve nos meus horizontes a publicação. Mesmo quando saiu o “Litoral” foi um desafio teimoso do João Luís Neca, do Bando de Palmela.

Julgo ter sido o Vergílio Ferreira que um dia escreveu que mesmo aqueles que escrevem para a gaveta, estão sempre à espera que um dia lh’a abram. Eu escrevi muito para a gaveta e era a minha mulher que a arrumava e organizava. Mais tarde o meu filho disciplinou-me no computador, mas continua a ser a minha gaveta informática.

Sem falsa modéstia, é o momento em que escrevo - à mão - que me seduz e alimenta; depois, muito raramente revisito o que escrevi; tenho medo do desconsolo. Nos últimos tempos, por “encomenda” de um estorninho da Taverna, o Pedro Sousa do Acert de Tondela e dos Gambuzinos e Peobardos, tenho escrito textos para teatro, e não me desagrada a publicação oral.

 

Escrevia no seu livro “Litoral”: “quando regressei às origens nada de mim morreu. Vendo bem, aconteci de outra maneira”. A ligação ao seu Avó contribui para esse regresso? Que memórias guarda desses primeiros anos da sua infância?

E continuo a acontecer de outra maneira porque a vida nos chama de muitas encruzilhadas e distâncias. O regresso de Coimbra foi o fecho do triângulo. Nasci na quinta. Na Covilhã era uma criança urbana; pedia autorização para ir brincar para o Jardim com os amigos; Eu e o João éramos os acólitos da missa da tarde na igreja de São Francisco; o padre Lemos (que depois deixou de o ser) emprestou-nos, aos dois, com conhecimento dos pais, um livro sobre educação sexual para crianças; era o tempo do Vaticano II; mais tarde, pelas dezassete horas, já eu e o João tínhamos extorquido, às respetivas mães, vinte cinco tostões cada um, para jogar snooker no Ginásio Clube.

No fim de semana e nas férias lá vínhamos na camioneta do Tonico para a quinta. O meu avô era um pedagogo nato. Dotado de uma subtileza invulgar tinha o humor clarividente de Monsieur de la Palisse que denunciava a essência por detrás do óbvio. Com ele, desde muito pequeno, aprendi todos os trabalhos e ciclos rurais. Muito pequeno, saltei um dia para um cesto de uvas de mesa e comecei a pisá-las, imitando os homens no balceiro; indiferente ao meu orgulho, o meu avô passou por mim e disse à minha mãe: ó Clementina vai lá ver o Tó! E mais aqui não cabe do Homem que me ensinou a dimensão das pequenas coisas que ainda hoje preenchem a essência mais nobre do meu pensamento.

 

O que continua a representar para si a Vela, globalmente entendida?

A Vela era o meu lado rural e telúrico. Quando mais tarde, já na faculdade, me afundei nos livros do Torga (com quem um dia falei), tinha encontrado por inteiro o lado granítico da existência.

Os sítios do silêncio nos lilases do crepúsculo. E ainda hoje, quando olho para a Serra do Seixo, vejo o dedo gordo e indicador do meu avô a ensinar-me onde o Sol se punha no pino do verão; depois começava a pôr-se cada vez mais abaixo – dizia. Eu viria a aprender o que era um solstício; o meu avô não precisava disso para nada.

A Vela continua a ser isto: um mosaico imenso de memórias à solta e, claro os amigos com quem continuo a entusiasmar-me na liberdade livre de uma boa conversa.

 

O que pensa desta homenagem que lhe faz o Município da Guarda?

Ouvi um dia a Jairzinho, jogador de excelência da seleção canarinha campeã do mundo, que falar sobre nós é indigesto. O reconhecimento, não o nego, afaga a alma e dá consistência à identidade. Mas foi com muitos outros, no trilho profissional; nas aventuras culturais; na partilha mais abrangente da vida; foi com os outros que são parte de mim, que esta homenagem é parte deles.

 

H.S. /Correio da Guarda

 

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publicado às 12:00

Congresso Médico da Beira Interior

por Correio da Guarda, em 27.10.24

 

Na Guarda vai decorrer nos próximos dias 30 e 31 de outubro o X Congresso Médico da Beira Interior (CMBI) / V Congresso Internacional da Beira Interior.

Organizado pela Direção do Internato Médico da Unidade Local de Saúde da Guarda, Unidade Local de Saúde da Cova da Beira e Unidade Local de Saúde de Castelo Branco em parceria com a Associação dos Médicos Internos da Guarda-AMIG, este congresso tem como objetivo promover o envolvimento de médicos e outros profissionais de saúde de várias especialidades hospitalares e dos Cuidados de Saúde Primários.

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Este evento vai reunir um grande número de congressistas,  "continuando a optar pela abordagem de temas transversais, inovadores e de interesse prático na atualidade" e que envolvem as várias especialidades como a Medicina Geral e Familiar, Medicina Interna, Cirurgia, Saúde Pública, Reumatologia, Pediatria, Gastroenterologia, Psiquiatria, Pneumologia, Nefrologia e Medicina Intensiva.

O congresso decorrerá no Teatro Municipal da Guarda. Os interessados podem obter mais informações aqui.

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publicado às 23:15

Conversa Aberta sobre o médico Ladislau Patrício

por Correio da Guarda, em 26.09.24

 

No Museu da Guarda terá hoje lugar, a partir das 18 horas, a  terceira “Conversa Aberta” sobre Médicos Ilustres na Guarda será dedicada ao médico Ladislau Patrício, terceiro diretor do Sanatório Sousa Martins.

Ladislau Patrício foi um distinto médico, apreciado escritor, humanista, acérrimo defensor da  Guarda, biógrafo do poeta Augusto Gil (seu cunhado). Este, clínico que integrou a estrutura diretiva da Ordem dos Médicos, foi o proponente da criação da especialidade de Tisiologia.

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A “Conversa Aberta” terá como moderador e palestrante Hélder Sequeira, que é o autor do livro "Ladislau Patrício - guardense, médico e escritor", publicado em 2004, e que é o primeiro volume da coleção "Gentes da Guarda".

Esta conversa aberta é promovida pela Secção Sub-Regional da Guarda da Ordem dos Médicos, em parceria com o Museu da Guarda.

Ladislau Fernando Patrício nasceu na Guarda, a 7 de dezembro de 1883. Com a implantação da República, este clínico teve uma fugaz passagem pela vida política; em 1910 aparece como Vice-Presidente da Comissão Executiva do Centro Republicano da Guarda, presidida por seu cunhado, o poeta Augusto Gil. Em 1911 esteve à frente dos destinos do município guardense.

De 1932 até de dezembro de 1953 dirigiu o Sanatório Sousa Martins. Na sequência de uma proposta do médico guardense foi criada, no âmbito da Ordem dos Médicos, a especialidade de Tisiologia, “com o acordo unânime dos membros do Conselho Geral”. Um dos seus principais sonhos concretizou-se em 31 de maio de 1953, com a inauguração do Pavilhão Novo do Sanatório Sousa Martins (paralelo à atual Avenida Rainha D. Amélia), um “edifício gigantesco com 250 metros de comprido e com 350 leitos destinados exclusivamente a doentes pobres”. Ladislau Patrício faleceu em dezembro de 1967.

O “Bacilo de Kock e o Homem” é uma das suas obras, de cariz científico mais divulgadas, a qual se integra na Biblioteca Cosmos, dirigida por Bento de Jesus Caraça; “Altitude: o espírito na Medicina” é outro dos mais significativos trabalhos de Ladislau Patrício. 

 

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publicado às 08:55

Médicos Ilustres na Guarda

por Correio da Guarda, em 04.08.24

 

A terceira “Conversa Aberta” sobre Médicos Ilustres na Guarda será dedicada a Ladislau Patrício e terá lugar no dia 26 de setembro, a partir das 18 horas, no Museu da Guarda.

Ladislau Patrício – terceiro diretor do Sanatório Sousa Martins – foi um médico distinto, apreciado escritor, humanista, acérrimo defensor da sua Guarda, biógrafo do poeta Augusto Gil (seu cunhado). Este, clínico que integrou a estrutura diretiva da Ordem dos Médicos e foi o proponente da criação da especialidade de Tisiologia.

A “Conversa Aberta”, que terá Hélder Sequeira como moderador e palestrante, é promovida pela Secção Sub-Regional da Guarda da Ordem dos Médicos, em parceria com o Museu da Guarda.

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publicado às 12:00

Pavilhão Novo do Sanatório da Guarda: memórias…

por Correio da Guarda, em 31.05.24

 

Hoje, 31 de maio, completam-se 71 anos após a inauguração do denominado Pavilhão Novo do Sanatório que constitui, hoje, o mais antigo bloco do Hospital da Guarda.

Este ato, previsto inicialmente para 28 de maio de 1953, ocorreu três dias depois, com a presença dos Ministros do Interior e das Obras Públicas.

A imprensa da cidade deu especial relevo ao ato, apresentando o novo pavilhão como “um edifício gigantesco com 250 metros de comprido e com 350 leitos destinados exclusivamente a doentes pobres”.

Com a construção deste novo pavilhão, o Sanatório Sousa Martins procurou aumentar a capacidade de resposta às crescentes solicitações das pessoas afetadas pela tuberculose, ampliando assim o seu papel na luta contra essa doença.

O elevado número de doentes com fracos recursos há muito fazia sentir a necessidade de dotar esta conhecida unidade de saúde com novas instalações; pretensão que os responsáveis pelo Sanatório Sousa Martins tinham já manifestado ao Ministro das Obras Públicas, aquando da sua visita, à Guarda, em 1947. As obras do novo pavilhão foram iniciadas quatro anos depois.

Pavilhão do Sanatório da Guarda_ .jpeg

A entrada em funcionamento deste pavilhão era aguardada com compreensível expectativa, mormente por quem trabalhava no Sanatório Sousa Martins.

O seu diretor, Dr. Ladislau Patrício – que nesse mesmo ano deixaria essas funções, bem como a atividade clínica – definiu o edifício como “um novo e valioso instrumento na luta em defesa da saúde pública do país”.

Na Guarda viveu-se mais um dia festivo. “Cerca do meio-dia, a estrada que conduz ao Sanatório tornara-se um rio de gente”, noticiou o jornal A Guarda. O Pavilhão Novo constitui, de facto, um marco importante na história do Sanatório Sousa Martins, instituição que não pode, de forma alguma, ser dissociada da Guarda do século XX.

Recordar esta efeméride é sublinhar quanto é fundamental a salvaguarda desta memória viva onde, no presente, prossegue a atividade hospitalar. Conciliar os rumos exigidos pelo progresso com a especificidade deste edifício será contribuir para o reencontro com décadas em que a Guarda conquistou, justamente, a designação de Cidade da Saúde.

 

Hélder Sequeira

 

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publicado às 08:45

Uma vergonhosa realidade…

por Correio da Guarda, em 18.05.24

 

Hoje, 18 de maio, ocorre a passagem do centésimo décimo sétimo aniversário da inauguração do Sanatório Sousa Martins que, durante décadas, funcionou na Guarda.

A inauguração (inicialmente prevista para 28 de abril e depois para 11 de maio) dos três pavilhões que integravam o Sanatório teve lugar a 18 de maio de 1907, com a presença do rei D. Carlos e da Rainha D. Amélia.

Aos dezoito dias do mês de Maio de mil novecentos e sete, num dos edifícios recentemente construídos no reduto da antiga Quinta do Chafariz, situada à beira da estrada número cinquenta e cinco, nos subúrbios da cidade da Guarda, estando presentes Sua Majestade a Rainha Senhora Dona Amélia (...), procedeu-se à solenidade da abertura da primeira parte dos edifícios do Sanatório Sousa Martins e da inauguração deste estabelecimento da Assistência Nacional aos Tuberculosos, fundada e presidida pela mesma Augusta Senhora (...)”. Assim ficou escrito no auto que certificou a cerimónia inaugural da referida estância de saúde.

O Sanatório Sousa Martins foi uma das principais instituições de combate e tratamento da tuberculose em Portugal. A designação de “Cidade da Saúde” atribuída à Guarda em muito se fica a dever à instituição que a marcou, indelevelmente, no século passado.

A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas do nosso país, tendo a elevada afluência de pessoas deixado inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural.

A apologia da Guarda como centro urbano “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras, pois era “a montanha mágica” junto à Serra. Muitas pessoas (provenientes de todo o país e mesmo do estrangeiro) rumaram à cidade mais alta de Portugal com o objetivo de usufruírem do seu clima, praticando, assim, uma cura livre; não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos.

As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e a consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões; isto porque não havia, no início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento; situação que originou fortes preocupações sanitárias às entidades oficiais.

No primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, Lopo de Carvalho tinha já destacado os processos profiláticos usados na Guarda. Este clínico foi um dos mais empenhados defensores da criação do Sanatório guardense, do qual viria a ser o primeiro diretor.

O fluxo de tuberculosos que vieram para o Sanatório guardense superou, largamente, as previsões, fazendo com que os pavilhões construídos se tornassem insuficientes perante a enorme procura. O Pavilhão 1 (onde funciona atualmente a sede da Unidade Local de Saúde da Guarda) teve de ser aumentado um ano depois, duplicando a sua capacidade.

Em 1953 um novo pavilhão (que ladeia hoje a atual Avenida Rainha D. Amélia) foi acrescentado aos três já existentes. O Sanatório Sousa Martins ganhou, consequentemente, maior dimensão e capacidade de tratamento de tuberculosos.

Pavilhão do Sanatório da Guarda .jpeg

Anotar a decrepitude dos antigos pavilhões, o perigo eminente de derrocada (ou outras eventuais ocorrências) e a passagem dos 117 anos após a inauguração deste Sanatório, não é um mero exercício de memória ritualista. É evidenciar o estado lastimoso em que se encontra o património físico de uma instituição com merecido relevo na história da saúde e da medicina em Portugal.

Um Sanatório ligado também à solidariedade, à cultura e à história da radiodifusão sonora portuguesa, mercê da emissora (Rádio Altitude) aqui criada em finais da década de quarenta do passado século.

Muito se tem falado do estado de abandono do edifício do Hotel Turismo, e da morosidade de um projeto que devolva à cidade a possibilidade de se rever naquela emblemática unidade hoteleira. Ao longo dos anos não têm faltado anúncios, intervenções, ideias, adiamentos de decisões, promessas…a maior visibilidade deste edifício, em pleno centro da cidade e em frente aos Paços do Concelho suscita, naturalmente, mais comentários e lamentações.

Em contrapartida, e embora a escassa distância – hoje também numa reconhecida centralidade – os históricos pavilhões Rainha D. Amélia e D. António de Lencastre continuam, apesar de sucessivos alertas e artigos publicados, a ser desprezados, esquecidos.

Pavilhão D. Amélia.jpeg

A sua recuperação permitiria que fossem utilizados para fins assistenciais ou outros; houve já projetos para a criação de um espaço museológico no Pavilhão Rainha D. Amélia, para a valorização do património florestal da antiga cerca do Sanatório; em 2001/2002 foi elaborado “um projeto para o Hospital da Guarda, que englobava o Pavilhão D. Amélia para as Consultas Externas, acoplado com outro pavilhão moderno. O pavilhão D. António de Lencastre estava destinado à parte administrativa, fazia parte de um complexo para a parte administrativa, acoplado a outros espaços”, como nos disse o Dr. José Guilherme (que dirigiu o Hospital da Guarda), em entrevista publicada na Revista Praça Velha. Nos últimos anos outras ideias foram surgindo, para utilização desses edifícios, sem que tivessem qualquer concretização até à presente data.

O abandono e degradação dos antigos pavilhões do Sanatório Sousa Martins não dignifica uma cidade que se quer afirmar pela história, pela cultura, pelo ensino, pelo turismo, pela qualidade do seu ar, pela sua localização…

Sanatório Sousa Martins - Guarda - foto HS.jpg

A bandeira da cidade deve ser arvorada diariamente, por todos quantos sentem e vivem a Guarda, pensando globalmente e não se circunscrevendo a intervenções articuladas com calendários eleitorais, agendas pessoais ou comentários de circunstância, no plano do politicamente correto; não devemos ser “socialmente, uma coletividade pacífica de revoltados”, na expressão de Miguel Torga.

É importante que contrariemos este estado de coisas, reivindicando soluções, apelando à união de esforço e à procura dos melhores planos/estratégias no sentido de serem recuperados, salvaguardados e utilizados esses edifícios seculares, elementos integrantes do ex-libris da Cidade da Saúde.

“Tudo é ousado para quem a nada se atreve”, escrevia Pessoa. Haja firmeza na ousadia e salvaguardemos um património ímpar da cidade e do país. E nada como uma visita ao local para nos apercebermos da vergonhosa realidade daqueles pavilhões do antigo Sanatório Sousa Martins, 117 anos depois da sua inauguração festiva a 18 de maio.

Amanhã pode ser tarde demais…

 

Hélder Sequeira 

 

Ouça, também, aqui

 

 

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Dia Mundial da Tuberculose

por Correio da Guarda, em 24.03.24

 

Dia Mundial da Tuberculose_n.jpg

O Dia Mundial da Tuberculose é hoje (24 de Março) assinalado. Este dia comemora a data em que Robert Koch, no ano de 1882, anunciou a descoberta do Mycobacterium tuberculosis, o bacilo que causa a tuberculose (TB).

Apesar de ser uma doença evitável e curável a TB “permanece como um importante problema de Saúde Pública". Recorde-se que o Sanatório Sousa Martins, inaugurado na Guarda em 18 de Maio de 1907, foi uma das principais unidades de saúde de Portugal no combate contra a tuberculose.

A designação de “Cidade da Saúde”, atribuída à Guarda, em muito se fica a dever a uma instituição que a marcou indelevelmente, ao longo de sete décadas, no século passado. Embora a situação geográfica e as especificidades climatéricas associadas tenham granjeado à Guarda esse epíteto, a construção do Sanatório Sousa Martins certificou e rentabilizou as condições naturais da cidade para o tratamento da tuberculose, doença que vitimou, em Portugal, largos milhares de pessoas.

A Guarda foi, nessa época, uma das cidades mais procuradas de Portugal, afluência que deixou inúmeros reflexos na sua vida económica, social e cultural. A apologia da Guarda como localidade “eficaz no tratamento da doença” foi feita por distintas figuras da época. Esta cidade começou a ser “a montanha mágica” junto à Serra, envolta ainda na bruma da atração e do desconhecido, palco frequente do magnífico cenário originado pela neve, que bem se podia transpor para o quadro descrito por Thomas Mann, no seu conhecido romance. Muitas pessoas vinham para a Guarda com o objetivo de usufruírem do clima de montanha, praticando, assim, uma cura livre, não sendo seguidas ou apoiadas em cuidados médicos. As deslocações para zonas propícias à terapêutica “de ares”, e consequente permanência, contribuíram para o aparecimento de hotéis e pensões, dado não haver, de início, as indispensáveis e adequadas unidades de tratamento.

 Esta situação desencadeou fortes preocupações nas entidades oficiais da época. Em 20 de Outubro de 1897, o Governador Civil da Guarda, José Osório de Gama e Castro, tornou público um Edital/Regulamento relativo às “Providências Prophiláticas contra o contágio da Tuberculose”. O referido regulamento ditava normas concretas para os “donos ou gerentes das hospedarias,” bem como para aos proprietários de casas alugadas, onde não podiam ser recolhidos “promiscuamente indivíduos sãos e doentes”.

Em 1895, realizou-se o primeiro Congresso Português sobre Tuberculose, dirigido por Augusto Rocha. Nesse congresso, Lopo de Carvalho (que viria a ser o primeiro Director do Sanatório Sousa Martins), já uma eminente figura da Medicina, discursou sobre os processos profiláticos usados na Guarda. Lopo de Carvalho foi um dos mais fervorosos defensores da criação do Sanatório – de que, aliás, viria a ser o primeiro diretor – o que aconteceu por decisão da Rainha D. Amélia, Presidente da Assistência Nacional aos Tuberculosos (ANT), instituição criada em 26 de Dezembro de 1899.

 A história da luta contra a tuberculose, em Portugal, cruza-se, assim, com a história da Guarda; um registo que deixamos a propósito da comemoração do Dia Mundial da Tuberculose.

 

Hélder Sequeira

 

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publicado às 13:08

Lopo de Carvalho: o primeiro diretor do Sanatório

por Correio da Guarda, em 06.07.23

 

Há 101 anos, a 6 de julho, falecia na Guarda o médico Lopo José de Figueiredo de Carvalho, um nome  indissociavelmente a esta cidade sobretudo ao Sanatório Sousa Martins, de que foi o primeiro director.

Natural de localidade de Tojal (concelho do Satão), onde nasceu a 3 de Maio de 1857, Lopo de Carvalho frequentou a Universidade de Coimbra e licenciou-se em Medicina no ano de 1883. Aluno brilhante, no final do curso foi convidado, pela sua Faculdade, a iniciar o doutoramento, proposta que declinou.

Nesse mesmo ano foi trabalhar para a Meda, como médico municipal; aí exerceu a sua actividade profissional, durante dois anos, prosseguida mais tarde na Guarda, passando ainda o seu percurso como clínico pelos Açores (Graciosa) e por Lisboa.

Com a fixação na Guarda (onde residiu até à sua morte) passou também a exercer as funções de professor do Liceu, à semelhança do que aconteceu com outras conhecidas figuras guardenses da época; cedo se começou a dedicar à causa da luta contra a tuberculose e a empenhar-se, activamente, na criação de estruturas vocacionadas para o tratamento daquela doença assim como no estabelecimento de normas e regulamentos sanitários.

“A defesa contra a tuberculose está regulamentada convenientemente, há muito tempo, na cidade da Guarda e em todo o distrito; o essencial é cumprir-se a lei e isso é da exclusiva competência das autoridades (…). É esta cidade a única no país que regulamentou a sua defesa contra a tuberculose. Os primeiros aparelhos de Trillat (pelo formol sobre pressão), para a desinfecção das casas e das roupas, que vieram para o nosso país foram adquiridos pela Câmara da Guarda por proposta minha”, escreveu aquele médico na resposta a acusações que lhe foram dirigidas por alguns articulistas da imprensa local, cujo entendimento sobre a importância do Sanatório divergia das ideias de Lopo de Carvalho e de quantos o acompanhavam na afirmação e desenvolvimento daquela unidade de saúde.

O primeiro director do Sanatório respondia aos seus críticos dizendo que “a higiene não se pode fazer somente em artigos de jornais e ofícios burocráticos. Para se fazer higiene é preciso gastar-se muita água e dinheiro”.

A “Curabilidade da Tuberculose Pulmonar”, trabalho apresentado no Congresso de Medicina de Lisboa, foi uma das suas mais aplaudidas intervenções em reuniões científicas, na maioria das quais levantou a bandeira das potencialidades da Guarda como cidade da saúde. Aquando do “Congresso de Tuberculose” realizado em Londres, em 1901, foi convidado por Sir William Broadbent para a vice-presidência honorária daquele evento científico.

Os seus esforços, conjugados com o apoio recebido da Assistência Nacional aos Tuberculosos, a que presidia a Rainha D. Amélia, conduziram à construção do Sanatório da Guarda, inaugurado em 18 de Maio de 1907.

Lopo de Carvalho.jpeg

Lopo de Carvalho seria agraciado, pelo Rei D. Carlos, com a Comenda de S. Tiago. “É de todo o ponto merecida a distinção, que recai sobre um verdadeiro homem de ciência, tisiólogo eminente, que tem sido, no nosso país, um dos mais denodados combatentes contra a tuberculose”, noticiou o Diário Ilustrado.

Redactor do jornal “Estudos Médicos”, assim como de “Coimbra Médica”, Lopo de Carvalho colaborou também com as publicações “Movimento Médico”, “Revista de Medicina e Cirurgia” e “Medicina Contemporânea”.

O seu consultório funcionou no edifício conhecido (na actual Rua Vasco da Gama) por Dispensário o qual doou, em 1932, ao Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos. Na rua que ostenta o seu nome existe uma casa que Leopoldina Lopo de Carvalho (a esposa deste médico) doou à cidade, com finalidades específicas; destinado, inicialmente a Arquivo Distrital nela funcionou um Jardim Infantil com o nome da benemérita senhora.

Lopo José de Carvalho (pai de outro conceituado clínico e professor universitário, Fausto Lopo de Carvalho) faleceu na Guarda a 6 de Julho de 1922. “O seu enterro foi a expressão mais rigorosa e levantada da consideração em que o povo da nossa terra tinha o ilustre homem de ciência”, realçou a imprensa citadina. O jornal Distrito da Guarda, a propósito do seu falecimento, escreveu que “o nome do Dr. Lopo de Carvalho não se perde no passado; o que se perde é a sua inteligência e os seus vastos conhecimentos científicos”.

O mesmo periódico, passados alguns anos, destacava os serviços “prestados a esta terra” pelo referido clínico. “E no estrangeiro, onde foi por várias vezes, tomando parte de congressos, ou em viagens de estudo, conhecia-se o seu nome em todas as estâncias de cura de tuberculose. Conhecia-se e admirava-se porque, nesta especialidade, o médico distinto pairava muito acima do normal”.

De entre os trabalhos publicados mencionamos “Seroterapia na Tuberculose Pulmonar”, “Uma Epidemia da Febre Tifóide”, “As causa da Febre Tifóide em Portugal” e “Tuberculosos Curados”, este em co-autoria com Amândio Paul, que lhe sucedeu na direcção do Sanatório Sousa Martins.

 Lopo de Carvalho tem o seu nome na toponímia guardense, numa artéria localizada entre o início da Avenida dos Bombeiros Voluntários (onde hoje está o Centro Comercial) e o cruzamento das Ruas Vasco Borges, Rua do Comércio e Largo General João de Almeida.

 

Helder Sequeira

 

 

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publicado às 09:01

Jornadas de Urologia da Beira Interior

por Correio da Guarda, em 06.09.22

 

Na Guarda vão decorrer no próximo dia 30 de setembro as I Jornadas de Urologia da Beira Interior, organizadas pela Unidade de Urologia da Unidade Local de Saúde.

Estas Jornadas, que terão lugar no  auditório da Escola Superior de Saúde, têm por objetivo a  aproximação dos Cuidados de Saúde Primários com a especialidade de Urologia. Serão abordadas neste evento as mais frequentes patologias urológicas, procurando-se clarificar o papel dos médicos de família no diagnóstico, tratamento e referenciação destes doentes.

De referir que será ainda sublinhado o papel dos urologistas na orientação destas patologias quando os doentes são referenciados pelos médicos de família.

O encontro reunirá profissionais nas mais diversas vertentes da medicina, desde médicos de medicina geral e familiar, outras especialidades médicas e cirúrgicas, enfermeiros e todos os interessados na área da Urologia. As inscrições podem ser feitas aqui

 

 

 

 

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publicado às 14:33

Sousa Martins: devoção popular na Guarda

por Correio da Guarda, em 18.08.22

 

Na Guarda, à entrada do Parque da Saúde, o busto do médico Sousa Martins é diariamente o ponto de convergência de muitos crentes da sua acção milagrosa, na linha de uma devoção popular que se manifesta, também em Lisboa (no Campo de Santana) ou em Alhandra. Hoje, 18 de agosto, assinala-se o aniversário da sua morte, ocorrida em 1897.

Sousa Martins - Hospital da Guarda _HS .jpg

O singelo monumento que se ergue dentro dos muros do ex-Sanatório da Guarda, a que a Rainha D. Amélia atribuiu o nome deste distinto clínico, continua a ser alvo permanente de preces e agradecimentos. Emoldurado de flores e envolvido em diferenciadas manifestações de agradecimentos por graças ou auxílios recebidos, junto dele chegam pessoas dos mais diversos escalões sociais ou culturais.

Oriundas um pouco de toda a região, preferem realçar a fé que depositam na intervenção e auxílio de Sousa Martins, invocando, na maioria dos casos, graves situações de saúde ou momentos de grande desespero. Qualquer hora do dia é propícia para alguns momentos de recolha espiritual e de preces que radicam na intimidade ou no sofrimento pessoal; mesmo à noite há quem vá ali rezar ou acender uma simples vela.

Ao serem questionados sobre o motivo que as conduz até ao busto daquele clínico as pessoas, regra geral, são parcas em palavras e querem o anonimato, embora declarem que têm “muita fé no irmão Sousa Martins”, sustentem a “ajuda recebida” e o considerem um santo.

Esta devoção de muitos residentes, ou não, nesta zona do interior não é apenas de hoje; aliás o nome de Sousa Martins está associado à Guarda desde o início do século passado, mercê da estrutura sanatorial que existiu nesta cidade.

A toponímia guardense consagra, igualmente, a memória deste vulto da medicina portuguesa, numa das ruas do moderno Bairro da Senhora dos Remédios, ele que é lenitivo para a dor ou sofrimento de muitos cidadãos anónimos, como se pode deduzir das placas de agradecimento ou objectos de cera deixados junto do seu busto.

 

  • O homem e o médico

 

José Tomás de Sousa Martins nasceu em Alhandra, a 7 de Março de 1843, no seio de uma família com escassos recursos económicos. Orfão de pai, aos sete anos, foi com a idade de doze trabalhar como praticante para a Farmácia Ultramarina, em Lisboa, propriedade de um tio seu, Lázaro Joaquim de Sousa Pereira.

Frequentou o Liceu Nacional de Lisboa e a Escola Politécnica; com aulas de manhã, trabalhava de tarde na farmácia e à noite dava explicações de forma a conseguir receitas para as despesas inerentes à sua formação académica. Concluído o curso de farmácia, em 1864, continuou a frequentar a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, terminando o curso de medicina aos 23 anos, em 1866; foi sempre um aluno distinto.

Eleito, em 1868, sócio da Sociedade de Ciências Médicas, em 1872 Sousa Martins leccionava já na Escola Médico Cirúrgica, onde viria a reger as cátedras de Patologia Geral, Semiologia e História da Medicina; exerceu actividade clínica no Hospital de S. José, em Lisboa, numa época em que a tuberculose ceifava anualmente milhares de vidas.

Em 1881 a Sociedade de Geografia de Lisboa promoveu uma Expedição Científica à Serra da Estrela, a qual foi integrada, entre outros, por Sousa Martins; dessa iniciativa resultou a elaboração de relatórios das várias secções científicas, que aparecem compilados num volume intitulado “Expedição Científica à Serra da Estrela” e, dois anos depois, o livro “Quatro Dias na Serra da Estrela”, da autoria de Emídio Navarro. A expedição teve o mérito (e sobretudo através da determinação de Sousa Martins), de chamar a atenção dos meios científicos e clínicos para as condições que a região oferecia no tratamento da tuberculose.

Sousa Martins defendeu a implantação de Casas de Saúde nesta zona, impulsionando a fundação, em 1888, do “Club Herminio”, uma associação de carácter humanitário que se manteve durante cerca de quatro anos; no verão desse ano, e correspondendo aos argumentos de Sousa Martins e de Guilherme Teles de Meneses, o médico Basílio Freire, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, instalou-se na Serra da Estrela, onde assegurou consultas gratuitas aos doentes que o procuravam.

Os esforços que Sousa Martins desenvolveu, fortalecidos pelas suas esclarecidas convicções, em muito contribuíram para a construção do Sanatório que viria a ter o seu nome, perenemente ligado à mais alta cidade de Portugal; para a Guarda vieram milhares de doentes que procuravam aqui a cura desta doença infecto-contagiosa provocada pela micro-bactéria conhecida por “bacilo de Koch”.

 

  • O primeiro sanatório da ANT

 

A Rainha D. Amélia materializou no sanatório guardense (o primeiro a ser construído pela ANT, inaugurado a 18 de Maio de 1907) a homenagem a Sousa Martins, atribuindo a esta instituição o nome daquele clínico, cuja acção e dinamismo ela tinha já evocado numa intervenção pública da Associação Nacional aos Tuberculosos, realizada em 1889. Sousa Martins, refira-se, tinha falecido dois anos antes, em Alhandra, no dia 18 de Agosto de 1897, depois de ter sido atingido pela tuberculose.

O Rei D. Carlos comentaria que se tinha apagado “a mais brilhante luz” do seu reinado. Guerra Junqueiro, referindo-se à personalidade de Sousa Martins, escreveu que ele se deu “como o Sol dá a luz, aos miseráveis, aos tristes, aos sonhadores. Foi o amigo carinhoso e cândido, dos pobres e dos poetas. A sua mão guiou, a sua boca perdoou, os seus olhos choraram. Teve sorrisos para a graça, enlevos para a arte, lágrimas para a dor”.

Numa cidade que não esquece o homem, o médico e o cientista cujo nome foi dado a um dos mais destacados sanatórios de altitude, permanece a devoção popular e a afirmação, a muitas vozes, da sua influência espiritual.

 

Helder Sequeira

 

 

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publicado às 13:49


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