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António Sequeira: a Guarda tem cozinha diferenciadora

por Correio da Guarda, em 26.08.22

 

“A gastronomia da Guarda é diferenciadora das outras regiões” sustenta António Sequeira, conhecedor dos tipos de culinária de vários países e experiência nas diversas tendências.

Natural de Avelãs de Ambom (concelho da Guarda) desde jovem que desenvolveu a sua atividade profissional na área da restauração e cozinha, conquistando, mercê do seu trabalho e empenho, uma merecida notoriedade.

Um dos projetos que está a desenvolver atualmente é o “Quinta à Mesa”, o qual tem por objetivo “aumentar e diversificar a produção” de legumes diferenciados.

 

Chef ANTÓNIO SEQUEIRA.- foto HS.jpg

Como começou a tua vida profissional e a tua ligação ao mundo da confeção de alimentos/cozinha?

Tudo começou no ano de 1967 ao terminar a escolaridade obrigatória O meu pai deu-me a escolher entre ficar na aldeia ou vir para Lisboa, obviamente vim para a capital.

Comecei a trabalhar num restaurante cujo proprietário era da minha aldeia e tinha emigrado para o Brasil. Estive neste estabelecimento até finais de 1976, tendo como funções desde aprendiz de cozinha, balcão mesas e até papelaria/ tabacaria.

Iniciei estudo noturno numa escola particular, equivalente ao ciclo preparatório. Os passos seguintes foram trabalhar em vários restaurantes como cozinheiro. Destaco entre alguns o “Le jardin”, “O caseiro” e “Adega de Belém”. Entretanto fiz um curso de cozinha na Escola Hoteleira de Lisboa e ingressei no Hotel Altis, pois era sonho de qualquer cozinheiro entrar numa equipe dum hotel; depois seguiu-se o Alfa e o Méridien.

Abriu uma vaga para formador no Centro de Formação Profissional para o Sector Alimentar, na Pontinha (CFPSA) e aí estive quatro anos a dar formação, tendo sido destacado para Bordéus, Macon e Hamburgo para ministrar formação de cozinha e doçaria portuguesa a imigrantes que residiam nestes locais.

 

A tua formação engloba o conhecimento de vários tipos de culinária de vários países, experiência nas diversas tendências culinárias, tradicional, Nouvelle Cuisine e cozinha de fusão, Cozinha Molecular. Há preferências especiais?

Além da cozinha portuguesa, destaco na cozinha espanhola, a paella à valenciana, zarzuela, soldaditos de Pavia e bacalhau pil-pil embora, injustamente se atribua à cozinha espanhola como sendo uma cozinha apenas de tapas e bocadilhos; claro que o prato mais conhecido é a paella, mas a cozinha espanhola, justiça seja feita, é muito mais rica.

Os supremos de galinha à moda de Kiev (antigamente cozinha russa, hoje ucraniana) não o destaco por razões atuais, mas sempre foi um prato da minha preferência, é um prato de técnicas difíceis.

A cozinha de fusão foi um movimento francês iniciado por chefes com Bocuse, Guerard, Verge, Troigross, entre outros porque a nouvelle cuisine ja tinha como princípio técnicas e ingredientes diferentes do usual.

Ainda não temos um prato que sirva de referência ou que seja um ícone na gastronomia portuguesa, porque são criações de chefes e estes são fruto dos seus restaurantes. Talvez um dia fiquem registadas as suas criações; claro que nesta análise estou a falar de chefes portugueses, se falar de Feran Adria ou Blumenthal e Alex Atala (dando este último destaque aos produtos brasileiros) estou a falar obviamente, também, de cozinha molecular.

Eu não tenho nenhum prato preferido, mas a espetacularidade e as técnicas baseadas na ciência tornam esta cozinha como infindável, pois as reações químicas dos alimentos submetidos às mais variadas técnicas fazem com que não passe de moda tão rapidamente pois ainda há muito a explorar.

 

O que achas da cozinha tradicional portuguesa?

É uma cozinha riquíssima e, infelizmente, ainda não está muito explorada; isto porque alguns dos pratos mais comuns já foram alvos de recriações, mas se alguns chefes fizessem uma pesquisa mais profunda talvez os aliciasse a recriar novos pratos.

Como exemplo disso recordo aqui alguns pratos dos quais tive conhecimento através de um gastrónomo que tive o privilégio de conhecer e participar com ele como júri num festival de gastronomia dos templários; já o conhecia, pois tinha lido os seus livros de pesquisa da cozinha portuguesa.

Falo de José Quitério. Através dele tomei conhecimento de muitas receitas antigas, tais como caldeirada seca adegas, bacalhau à João do buraco, bacalhau à Zé do gato, lulas com carne de porco, perdiz com ameijoas, etc.

 

A gastronomia da Guarda, e região circundante, é diferenciadora? És um defensor da nossa gastronomia?

Claro que sou defensor! A gastronomia da Guarda é diferenciadora das outras regiões pelo facto se ser uma zona muito fria, o queijo da serra, as maçãs bravo de Esmolfe, os enchidos, as sopas, os pratos de cabrito e as trutas são alguns exemplos dessa diferença.

Não é uma cozinha muito rica em diversidade, mas é uma cozinha rústica e forte em sabores.

 

Ainda em termos regionais, Guarda, quais são os pratos da tua preferência?

O cabrito, a morcela, farinheira, o queijo, a sopa de castanhas e as trutas.

 

O teu percurso profissional passou pela função de Chefe de Cozinha de vários e conhecidos restaurantes, nomeadamente de Lisboa. Quais os que te deixaram mais gratas recordações e que pratos suscitavam a tua preferência?

Entre muitos destaco o “Rancho” do restaurante o Caseiro, do Altis os “patês e as galantines”, do Méridien o “robalo à Paul Bocuse” e “ballotine de linguado e salmão com trio de manteigas montadas” (beurre blanc).

No Méridien foi o início da tão famosa nouvelle cuisine pelo menos em Portugal; foi uma experiência enriquecedora. Este hotel foi uma grande referência para muitos profissionais

 

Foste o proprietário do restaurante Taverna D ´El Rei. Como e onde surgiu esse projeto e como evoluiu? Era uma proposta diferenciadora de outros restaurantes?

Bom, ter um restaurante meu sempre foi um sonho, claro que é o sonho de muitos profissionais.

Foi por acaso num aniversário de umas pessoas amigas, e um dos presentes tinha um espaço no Montijo e assim surgiu este projeto.

Evoluiu bastante até surgir no espaço de um ano e meio uma crítica gastronómica no jornal Expresso; esta crítica foi excelente e projetou o restaurante a nível nacional.

Mas uma mudança de sentido de trânsito, mudança essa orquestrada pelo vereador da Câmara, levou a uma quebra de mais de 50% das vendas. Esta situação levou-me a trespassar o restaurante, sonho que virou pesadelo.

Ainda hoje recordo com agrado os elogios de muitos clientes, alguns deles figuras públicas. Fiz uma pesquisa da gastronomia do Montijo e arredores e isso foi diferenciador em relação a outros estabelecimentos.

 

Foram vários os Hotéis onde trabalhaste. Quais os que te deixaram melhores recordações e que responsabilidades tinhas?

O Méridien sem dúvida. Nunca chefiei um hotel, as minhas funções foram como chefe de partida; “partida” é o equivalente a uma secção, como por exemplo secção dos peixes, carnes ou dos frios.

 

No teu currículo está a passagem, como aluno e como docente, pela Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. Como professor a quem se dirigiu a formação ministrada e em que consistiu?

As pessoas que queriam tirar uma licenciatura na área alimentar tinham por objetivo serem chefes de cozinha, trabalhar em empresas a desenvolver novos produtos e higiene e segurança alimentar

Esta licenciatura tem disciplinas muito importantes para a área da restauração. É uma licenciatura que confere aos alunos um vasto conhecimento em diferentes áreas, embora três anos não sejam suficientes para chefiar, mas com dois ou três anos de experiência no mercado de trabalho dá-lhes um grande know how para o futuro.

Como aluno, proporcionou-me conhecimento e uma visão completamente diferente da cozinha e restauração em geral, disciplinas como microbiologia, história da alimentação, tecnologia alimentar, química alimentar, enologia, fisiologia, análise financeira, recursos humanos, etc.

Esta diversidade de disciplinas dá ao aluno um conhecimento e performance ficando com bases muito importante para o desempenho da sua atividade profissional, para seu próprio benefício e do consumidor.

AS em Júri com o Chef Antonio Silva.jpg António Sequeira (no lado direito da foto) com o chef António Silva 

 

O teu trabalho como formador passou igualmente pela Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal. Que atividades e formações foram desenvolvidas nesse âmbito?

Na ACPP fui formador em cursos de cozinha tanto para jovens como para adultos, e fui responsável pelo núcleo jovem; isto implicava treinar jovens para as olimpíadas de culinária. Pela associação fui também júri de concursos nacionais de culinária “Toque dór Nestlé” e para eleger o Chefe cozinheiro do ano.

 

Em 1992 e 1996, foste Treinador e Selecionador da Seleção de Juniores da equipa Nacional nas Olimpíadas de Culinária IKA. Fala-nos desta experiência e qual o trabalho desenvolvido.

Foi uma experiência extremamente enriquecedora, porque as olimpíadas são o melhor que se faz em culinária, e observei coisas notáveis e técnicas fantásticas.

O trabalho era treinar os jovens para competirem com outros profissionais de muitos países na área da cozinha e pastelaria, muitas destas seleções eram apoiadas por grandes empresas.

Todas as olimpíadas têm como base um produto, no caso dos juniores, em 92 o produto era salmão e em 96 frango, na sobremesa também escolhem um produto ou uma técnica; sabemos antecipadamente qual o produto e os treinos são nesta base.

 

E sobre o teu trabalho enquanto Treinador da equipa do concurso Mundial de Culinária em Stavenger 94, Noruega, o que recordas?

Recordo o convívio com outras seleções e colegas, experiências gastronómicas não só no concurso, mas algumas equipes ofereciam refeições a todos os elementos das equipes.

Recordo um fantástico lago perto de uma montanha, onde decorreu um almoço oferecido pela Finlândia. Davam a cada participante uma mochila com talheres, guardanapos de pano copos feitos em madeira e uma tábua em madeira que servia de prato! Comida e técnicas tradicionais! Nunca vou esquecer este convívio.

Estávamos nós, portugueses, junto ao lago falando de tudo, incluindo alguns disparates, quando uma jovem senhora de cabelo louro quase branco se dirigiu a nós em bom português: ficámos boquiabertos! Era uma chefe de cozinha finlandesa que tinha estado no Brasil muitos anos!

O concurso de culinária era fazer um prato de base tradicional, mas contemporâneo e este evento foi também o congresso da Wacs (World Association of Chefs Societies). Nesta cidade reuniram-se cozinheiros de todo o mundo para competir e confraternizar, foi também uma experiência fantástica pois foi-nos dado a conhecer um pouco da cultura deste país, estava muito bem organizado. Desde a visita aos fiordes, passeios em barcos vikings e quintas com grupos de danças típicas.

 

A tua atividade passou também pelo trabalho no Centro de Formação Profissional do Sector Alimentar. Como decorreu essa experiência e em que cidades foi desenvolvida?

Fui para França logo assim que entrei como formador para esta instituição; fui colocado em Bordéus para lecionar um curso de cozinha e pastelaria portuguesa a portugueses residentes nesta cidade.

Este curso teve a duração de 4 meses; também estive em Macon e posteriormente em Hamburgo.

Durante os quatro anos que estive no Cfpsa também lecionei em Estremoz e na sede deste centro. Foi uma experiência extraordinária, dado que aprendemos com os alunos alguns conhecimentos sobre a gastronomia local destas comunidades.

 

Mais recentemente, ocorreu a tua ligação ao Instituto Técnico de Alimentação Humana (ITAU). Que trabalho desenvolveste, nesse contexto?

Como responsável das salas VIP, o meu trabalho consistia em preparar refeições para a presidência da Siemens, sempre que havia reuniões de negócios com altos representantes tanto de câmaras municipais, CEOs da Siemens de outros países assim como membros do governo.

Foi extremamente satisfatório pois exigia muito conhecimento e sensibilidade porque para a Siemens era muito importante que estes serviços corressem bem, uma vez que uma boa refeição pode ter um final favorável em qualquer negócio.

 

E sobre o teu trabalho nas Edições Impala, em especial quanto à produção e execução de receitas, para as revistas desse grupo, que balanço fazes?

Faço um balanço muito positivo, pois foram 10 anos de alegrias, sucessos e sacrifícios. Éramos líderes de mercado e mudávamos hábitos e tendências, pois quando cheguei a esta editora não era usual a utilização de ervas aromáticas nas receitas tais como manjericão, segurelha, estragão, aneto, funcho, cebolinho etc....

Inicialmente éramos 5 elementos na cozinha e passados dois anos passamos para 10 e trabalhávamos em dois turnos, das 9h às 18h e outro grupo das 18h à meia-noite. O número de receitas por mês também quadruplicou. Tínhamos de ter muita imaginação e conhecimento, pois os temas não podiam ser repetidos nem as receitas, por exemplo.

No tema de Natal não podíamos repetir receitas publicadas no ano anterior, isso obrigava-nos a uma grande pesquisa.

António SEQUEIRA _o.jpg

Presentemente estás vocacionado para produção de mini legumes diferenciados. Fala-nos desta nova fase e do Quinta à Mesa.

Bom, como cozinheiro senti sempre que os produtos que nos vinham parar às mãos eram produzidos fora de Portugal e não era fácil a sua aquisição

Isso levou-me a pensar em produzir cá esses mesmos legumes, daí este projeto “Quinta à mesa”. O objetivo é aumentar e diversificar a produção.

 

Achas que os jovens de hoje se interessam mais pela cozinha?

Claro que sim, essa é uma das razões porque há mais inscrições para frequentar cursos e licenciaturas em cozinha, o nível de qualidade e os prémios dados a chefes de cozinha e a restaurantes serem premiados com estrelas Michelin origina este interesse.

Em dez, quinze anos a gastronomia em Portugal evoluiu muito, somos mais procurados por turistas e mesmo os nacionais procuram novos restaurante para outras experiências.

 

E na região da Guarda o que poderia ser feito para valorizar ainda mais a gastronomia regional?

Se houver polos de interesse, há mais visitantes, mais visitantes significa consumo. Assim se valoriza tudo o que se produz numa região. Os festivais gastronómicos são os eventos mais procurados do norte a sul de Portugal, se uma determinada região não dá a conhecer a sua gastronomia e os seus produtos não há valorização.

 

Há algum projeto teu que possa vir a passar pela Guarda?

Não está nos meus horizontes

 

Vens com frequência à Guarda? O que achas da atual realidade social e económica?

Três a quatro vezes por ano. Não tenho permanecido muito tempo na Guarda, vou lá de quando em vez, às compras, e não estou nesta zona mais do que 4 a 5 dias.

Daí que não tenho uma opinião muito realista da situação social e económica, mas é impossível não observar que esta cidade está muito melhor do que há dez anos; por norma quando as capitais dos países evoluem, por arrasto nas outras cidades também há mudanças.

Houve uma grande melhoria devido a melhoria das vias de acesso, assim como os serviços e o atendimento e quando estes três indicadores se conjugam o resultado é obviamente uma melhoria do nível de vida.

 

 

 

 

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