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Carlos Brito: paladino na luta contra o alcoolismo

por Correio da Guarda, em 07.01.22

 

Carlos Brito é, inquestionavelmente, o rosto mais conhecido do Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda e um empenhado protagonista da solidariedade.

Com toda a frontalidade, diz-nos que “é um alcoólico tratado há 41 anos que após a sua recuperação, em 1980, tomando consciência das inúmeras mudanças positivas que daí advieram, cedo começou a difícil tarefa de sensibilizar e motivar ao tratamento amigos, conhecidos e desconhecidos”.

O guardense Carlos Brito converteu a sua vida numa missão e tem lutado “em prol de pessoas com problemas ligados ao abuso e dependência de álcool e das suas famílias”.

Tendo sempre presente o lema “Em ajuda aos alcoólicos do distrito”, o nosso entrevistado de hoje é uma pessoa incansável na resposta às solicitações de intervenção e de ajuda; ao CORREIO DA GUARDA referiu que à sua missão foi somando "a preocupação com a população em geral e em particular com as camadas jovens, assumindo um papel interventivo na área da prevenção primária através da realização e dinamização de sessões de esclarecimento, em diversos estabelecimentos de ensino”. Intervenção que alargou ao Estabelecimento Prisional da Guarda e à comunidades em geral. “Um árduo e longo percurso de intervenção na sociedade na luta contra o alcoolismo, a nível nacional”. A partir da Guarda, a sua cidade, que não deve esquecer o seu exemplo e trabalho.

Carlos Brito - D .jpg

 

Quando surgiu, e como, o Centro de Alcoólicos Recuperados?

Após o meu tratamento, as pessoas (sobretudo familiares) batiam à minha porta para pedir ajuda para uma situação de alcoolismo de um marido, de um familiar, de um amigo!

Entre 1980 e 1983, ajudei e sensibilizei 78 pessoas que encaminhei para o Centro de Recuperação de Alcoólicos de Coimbra (hoje Unidade de Alcoologia Maria Lucília Mercês de Mello de Coimbra – UAC).

Era difícil conciliar a minha atividade profissional e a minha vida pessoal com esta tarefa, quase sempre muito árdua.

Senti que precisava de uma estrutura sólida para poder continuar. Juntei algumas pessoas, quase todos alcoólicos tratados e ajudados por mim, que quiseram assumir o risco e a 7 de dezembro de 1983 nascia o Centro de Alcoólicos Recuperados do Distrito da Guarda (CARG), um projeto pioneiro a nível nacional.

Socios fundadores.jpg

Sócios fundadores

 

Quais foram as principais dificuldades para a sua concretização? E quais foram os apoios mais significativos?

Foram muitas as dificuldades! No momento da fundação da instituição possuía apenas 40.000$00, que serviriam para pagar 2 meses de renda!

Um grande risco…Muitas vezes se pediram livranças ao banco (que tinham de ser assinadas por mim e pela minha esposa, bem como pelo tesoureiro e pela sua esposa) para o CARG poder continuar. “Hipotequei” muitas vezes a minha vida para que a “minha” obra não morresse!

Hoje, felizmente, a situação é diferente porque gradualmente o nosso trabalho foi sendo reconhecido, enquanto IPSS, que presta um serviço gratuito.

Assim, contamos com alguns apoios. Em 1987 foi assinado um Protocolo Atípico com a Segurança Social. Este tem sido felizmente renovado anualmente, e hoje constitui o nosso principal apoio financeiro.

Em janeiro de 1982, foi assinado um Acordo de Cooperação Atípico com a Administração Regional de Saúde da Guarda, que ainda se mantém.

De louvar o grande apoio, ao longo dos anos, da Câmara Municipal da Guarda que nos atribuiu o primeirito subsídio, aquando da fundação do CARG.

Foi também a Câmara Municipal da Guarda que nos cedeu as instalações da atual sede, em 2006, e que sempre nos contemplou, ao longo dos anos, com a atribuição de um subsídio.

Novembro 1985.jpg

Entrega da medalha de reconhecimento à atividade do CARG, pela autarquia guardense.

 

De realçar, ainda, o grande apoio da Junta de Freguesia da Guarda e de algumas Câmaras Municipais do Distrito que, pontualmente, nos atribuem subsídios.

Uma palavra de gratidão à Unidade de Alcoologia Maria Lucília Mercês de Mello (de Coimbra), que sempre acreditou no nosso trabalho e nos apoiou desde a primeira hora ao nível internamentos e consultas, e ainda a Unidade Local de Saúde da Guarda, E.P.E./Hospital Distrital Sousa Martins da Guarda que, através do seu serviço de psiquiatria, nos ajuda ao nível de internamentos pontuais.

 

Das atividades realizadas, qual a que lhe deixou memórias particulares, e porquê?

 A que mais me marcou, para além da recuperação de todos os doentes que ajudei, foi a comemoração dos 25 anos de CARG, realizado na Câmara Municipal da Guarda.

Comemoração que contou com a participação de cerca de 500 pessoas (alcoólicos tratados, suas famílias e pessoas da comunidade), onde me foi atribuída a medalha de prata do município.

Foi para mim um momento gratificante. O reconhecimento de uma obra em que muito poucas acreditaram no início. 25 anos é muito tempo na vida de uma instituição. Fiquei muito feliz e orgulhoso por ter atingido esse patamar.

 

Carlos Brito - A.jpg

A realidade de ontem e de hoje, ao nível dos casos de alcoolismo, é diferente?

 Sem dúvida! Ontem, o alcoolismo era tabu, para além de não ser reconhecido como uma doença pela maior parte das pessoas. O bêbado era o agricultor, o trolha, o coitadinho…que bebia porque queria.

Era uma vergonha social! Hoje, o alcoolismo é considerado uma doença que atinge também o advogado, o professor… que atinge todos da mesma forma, que destrói vidas!

Sem falsa modéstia, penso que o CARG contribuiu muito para esta desmistificação do alcoolismo, para as pessoas perceberem que o alcoolismo é uma doença crónica, uma reconhecida pela OMS.

Uma doença para toda a vida, que só pode ser “controlada” com a abstinência do doente, para sempre.

 

Há concelhos com maior incidência de taxas de alcoolismo? Quais?

 Não há dados estatísticos recentes. Melhor nem há dados estatísticos! Beber é um ato socialmente aceite, como medir a incidência das taxas de alcoolismo?...

O que podemos medir é o número de doentes que conseguimos sensibilizar e levar a tratamento na UAC (embora muitos se percam pelo caminho!)

Com base nesse número, referente apenas ao distrito da Guarda, podemos dizer que a maior incidência é no concelho da Guarda (também por ser o maior), com 905 internamentos, seguido do concelho de Celorico da Beira com 114, e do concelho do Sabugal com 113 doentes internados. Embora estes números estejam longe de quantificar o nosso trabalho.

Um internamento pode significar dezenas de quilómetros percorridos, inúmeras intervenções, incontáveis telefonemas! Cada caso é um caso, uma história de vida, atrás da qual há muitas outras vidas, uma família que sofre!

 

Carlos Brito - C.jpg

Preocupa-o a incidência do alcoolismo na Juventude?

É um problema que me preocupa muito, sem dúvida!

Os jovens consomem cada vez mais! Já não é o vinho o mau da fita, mas o shot, que se tornou o rei da festa! São as bebidas brancas. Isso explica a alcoolização mais rápida.

Antes, um processo de alcoolização, de alguém que consumisse sobretudo vinho, demorava cerca de 20 anos. Hoje, a alcoolização é muito mais rápida, em 5, 10 anos “criamos um alcoólico!

É importante realçar que a alcoolização é mais rápida na mulher do que no homem devido às suas características corporais diferentes.

É preocupante, a prevenção é fundamental. É importante que os pais se deixem de se preocupar apenas com a droga, e se preocupem também (arrisco-me a dizer sobretudo) como o álcool.

Temos de consciencializar! Fazer perceber que dar um copo a um miúdo antes dos 18 anos, não é torná-lo um homem (como muitas vezes ouvi da boca de pais) é torná-lo um potencial alcoólico, no futuro.

 

Tem sido muito solicitado para ações de sensibilização? Que impacto têm tido essas ações?

A prevenção primária sempre foi uma prioridade na vida da instituição. Somos cada vez mais solicitados para fazer sessões de esclarecimento. Isso mostra-nos que as pessoas estão mais alertas para o problema, sobretudo ao nível dos jovens.

A partir do ano 2000, as solicitações aumentaram substancialmente! São as instituições de ensino que mais nos solicitam.

Realço aqui a Escola Afonso de Albuquerque (Guarda) onde todos os anos, realizamos várias sessões, a convite do Dr. Madeira, um professor muito atento para o problema. Muitas vezes, há miúdos que nos procuram na sequência de uma sessão, reconheceram nas nossas palavras o problema vivido em casa. Pedem ajuda!  Muitos choram.

Já me aconteceu muitas vezes, vários anos depois, alguém me reconhecer e dizer que se lembra da sessão que fiz na sua escola, dizer que se lembra de cada palavra, dizer que o meu testemunho o marcou profundamente. Fico feliz!

Sinto que pelo menos para aquelas pessoas fiz a diferença!

Também fazemos muitas sessões para a comunidade e, regularmente, somos solicitados pelo estabelecimento prisional da Guarda, onde fazemos sessões de esclarecimento para os presos.

Muitos chegaram ali por causa do álcool e muitas vezes percebem-no depois de me ouvirem! Contamos com cerca de 450 sessões realizadas em vários pontos do país e ilhas.

 

O Centro é uma referência em termos nacionais?

 Foi longo o percurso, foi sinuoso, mas podemos dizer que somos uma referência nacional!

Somos falados e procurados por que fazemos diferente. Não somos Alcoólicos Anónimos (não tenho nada contra o AA), somos alcoólicos recuperados, pessoas que dão a cara, que assumem o seu alcoolismo e isso faz toda a diferença.

Digo sempre que um alcoólico que não assume a sua doença é um alcoólico recaído… raramente me engano, infelizmente.

Entrevistas na imprensa, testemunhos em diversos programas de televisão. Já não é só a minha história de vida que conta, é o trabalho que fazemos, os resultados que temos, com uma taxa de sucesso de cerca de 80%. Somos falados em congressos, em encontros académicos, pelo trabalho que realizamos.

E isso é muito gratificante.

Carlos Brito - B .jpg

Como se sente, face ao trabalho que tem realizado após estes anos?

Sinto que criei um filho. O meu quinto filho, como costumo dizer. Tenho um sentimento de missão cumprida!

Quando morrer, sei que deixarei um legado, uma herança, que desejo que continue para além de mim! Continuarei esta missão enquanto puder, um pai não deixa morrer um filho, certo?

Desejo que alguém a continue depois de mim, se possível com a mesma entrega, a mesma resiliência com que eu o faço! Desejo que este “filho” continue o seu caminho…

 

 

 

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